Créditos: Divulgação
18-09-2025 às 08h21
Sérgio Augusto Vicente*
Na boca, a cicatriz da cirurgia de 2010. Na testa, o vestígio do procedimento de 2019. Dois carcinomas causados pela excessiva exposição ao sol. Nas costas, outra lesão oculta, que ficou por ser extraída. Um dos olhos, se aberto estivesse, também denunciaria, através da pupila dilatada, o trágico acidente com o nó de uma corda, ocorrido em meados dos anos 1990. Ossos do ofício de pequeno produtor rural, exposto às rudezas e singelezas da vida camponesa. Na coxa e nos pés, escondidos pelas flores naturais, queloides e marcas de feridas causadas por quedas e estrepadas de arames e paus. Nos calcanhares, rachaduras e peles espessas pelo longo hábito das solas beijarem e esmurrarem o solo em que nasceu, cresceu e… morreu.
O cabelo, branco e escasso, denuncia os bem vividos 82 anos de idade, de alegrias, preocupações e ansiedades. A propósito, ainda me lembro do último corte, em 10 de agosto, Dia dos Pais. Nos últimos anos, desde a pandemia de Covid-19 e a queda da ponte que ligava o município de Simão Pereira à comunidade de Sobragy – onde morava sua cabeleireira -, era eu quem o cortava.
Em cada pinta, cada mancha, cada cicatriz, aparente ou escondida, eu podia narrar a vida de meu pai naquele inacreditável 5 de setembro de 2025, em que seu corpo foi velado na igreja matriz de Nossa Senhora da Glória. Digo “inacreditável”, porque o sono eterno não avisa quando vem, e, uma vez não avisando, nos faz viver uma mistura de ficção e realidade. O mistério envolto nessa experiência de nos ser arrancada a presença física da pessoa amada não tem inteligência artificial que explique. Resta-nos a sensação de mente anestesiada e atônita, como a da criança com o primeiro “dente-de-leite” extraído através do repentino e definitivo “puxão”.
Incrédulo, eu observava os mínimos detalhes daquele “corpo-livro”, no qual cada marca é um capítulo, uma página, um parágrafo, uma estrofe, um verso, um período, uma frase, uma palavra, uma letra, um silêncio… Uma dor sentida pela contemplação da matéria inanimada, mas ainda viva nas memórias e na imaginação dos que permanecem por aqui. Um corpo-livro de edição e tiragem limitadas, de matéria degradável, cujo precioso conteúdo, para se perpetuar nas memórias das atuais e futuras gerações, precisa ser lido, relido, sentido, citado, reeditado, ressignificado.
Nosso desejo humano é o de perpetuar o corpo, o vaso da alma, com suas formas, como uma estátua. Mas prefiro conservar em meu vaso as imagens traduzidas em palavras. Elas me parecem mais eficazes para eternizar as nuances do afeto que eu e meu pai sentimos um pelo outro.
Elas, as palavras, me proporcionam cavar mais fundo a alma de meu pai na minha (in)consciência: suas trovas, ditados, histórias e lições de vida jamais poderão ser traduzidas para o bronze ou pedra. É através da palavra que continuo escutando suas dores, alegrias, suspiros e canções de ninar… São as palavras, enfim, que me fazem gravar na mente o que um dia lhe doeu e lhe acariciou a carne e a pele, que não mais estão entre nós. A carne se transformou em verbo conjugado em nossas memórias, no passado, no presente e no futuro. Assim, o “corpo-livro” se livra das amarras temporais, alcançando sua eternidade de paz.
*Sérgio Augusto Vicente é Professor de História e Historiador. Doutor, Mestre, Bacharel e Licenciado em História pela UFJF. Colunista do jornal “Diário de Minas” e colaborador de outros periódicos. Membro correspondente da Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil (Mariana-MG). Trabalha na Fundação Museu Mariano Procópio
(Juiz de Fora-MG).

