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09-04-2025 às 09h05
João Capiberibe*
Como escrever essa história? Pois é … Vou rabiscar do jeito que der. Vamos lá!
Eu era governador quando, certo dia, um executivo da British Petroleum entrou em meu gabinete. O ano era 1999. A empresa tinha uma sonda pesquisando petróleo na foz do Amazonas.
Antes dessa visita, Janete e eu havíamos ido a Londres para conversar com os executivos da BP. Queríamos entender o andamento da pesquisa, discutir as questões de segurança ambiental e, finalmente, pleitear a inclusão do Amapá na cadeia de valor do petróleo — na fase de pesquisa e, eventualmente, na produção comercial.
Eles estavam bem preparados para falar sobre a pesquisa e as medidas de segurança ambiental, mas, quando tocamos no tema da inclusão do Amapá, não tinham nada a dizer. Explicaram que toda a estrutura de logística e abastecimento para a exploração offshore já estava consolidada em Belém desde as primeiras pesquisas iniciadas pela Petrobras nos anos 1970. Infelizmente, segundo eles, nada podia ser feito para atender à nossa demanda. Pressionados, decidiram mandar um executivo a Macapá.
Dois meses depois, recebi o executivo na porta do meu gabinete. Ao me cumprimentar, ele bateu os olhos em um quadro de Salvador Allende pendurado na parede, ao lado esquerdo da minha mesa de despacho. Não se conteve. Caminhou na direção do quadro, parecia atônito, avançou três passos e parou. Olhou para mim, depois para o quadro. Repetiu o gesto três vezes. Finalmente, veio na minha direção e exclamou:
— “Te conozco! ¡Estabas en Padre Hurtado!”
— Sim, eu estava com minha família em Padre Hurtado… Mas como sabes?
— “Eu sou o chileno casado com a húngara que vocês, brasileiros, não permitiram que fosse expulso do refúgio Padre Hurtado.”
O quadro que deixou perplexo o executivo da BP era — e continua sendo — uma permanente homenagem ao presidente Salvador Allende, assassinado pelos militares golpistas no Palácio La Moneda, em Santiago, em 11 de setembro de 1973. Hoje, ele está pendurado na parede da sala da minha casa.
No mesmo dia do golpe, começou uma feroz perseguição aos estrangeiros. Eu, Janete, Artionka, Camilo e Luciana escapamos graças à proteção generosa do bispo de Talca, Dom Carlos González, que acionou o ACNUR (Agência das Nações Unidas para os Refugiados) e a Cruz Vermelha Internacional, que nos escoltaram de Talca até um dos campos de refugiados das Nações Unidas — o de Padre Hurtado, em Santiago — onde fomos acolhidos e permanecemos por três meses, antes de partir para o Canadá.
Sim! Lembrei daquele dia! Éramos mais de duzentos refugiados de várias nacionalidades. Nós, brasileiros, éramos maioria. O casal — ele chileno, ela húngara — entrou no campo de refugiados para escapar dos militares. A ACNUR atendeu o pedido dela, mas negou o dele, dizendo que só podia receber estrangeiros residentes no Chile. Alegaram que sua presença ali poderia parecer uma provocação aos militares, que, mesmo sabendo tratar-se de território sob bandeira da ONU, não hesitariam em invadir o campo para prendê-lo.
Mesmo diante da ameaça, o coletivo de refugiados, com os votos dos brasileiros, decidiu que ele ficaria. E ficou! E, depois de uma longa viagem no tempo, voltamos a nos encontrar. Ele aparece como executivo da BP, em meu gabinete de governador, para tratar da inclusão do Amapá na cadeia de valor do petróleo.
O que resultou dessa conversa, regada à emoção, conto mais adiante.
Mergulhei no passado para lembrar ao presente: a pesquisa na foz do Amazonas não começou agora. O Bloco FZA-M-59, que está prestes a receber licença ambiental, representa o 112º poço de pesquisa autorizado pelo Ibama nos últimos 50 anos.
Se o Brasil tivesse investido em sua biodiversidade com a mesma dedicação que deu ao petróleo — com a criação da Petrobras, em 1953 — e à agropecuária — com a fundação da Embrapa, em 1973 —, poderíamos estar hoje entre as três maiores economias do mundo. Bastava que, há 52 anos, junto com a Embrapa, o governo tivesse criado também uma Embrabio — Empresa Brasileira de Aproveitamento da Biodiversidade. Com foco em pesquisa, inovação e uso sustentável dos nossos recursos naturais, essa instituição poderia ter impulsionado uma verdadeira revolução verde na economia brasileira, assim como a Embrapa transformou o agronegócio nacional.
No rádio, na TV e nas redes sociais, ouço vozes entusiasmadas anunciando que, finalmente, a riqueza do petróleo bateu à nossa porta! Só que o Ibama não quer deixar entrar. A torcida em torno da liberação da licença ambiental parece disputa de final de campeonato. Assim que o Ibama soar o apito final — o que não deve demorar —, aí é só correr para o abraço. Estamos todos ricos!
Calma! Não é bem assim.
— “Ah, mas a Guiana está explorando petróleo de boa!”
Sim, é verdade. Lá, eles pesquisaram, encontraram e estão produzindo petróleo. Nós, aqui, ainda estamos na fase de pesquisa. Esta licença ambiental do Bloco FZA-M-59 é mais uma das tantas que o Ibama já liberou para pesquisa na foz do Amazonas.
— “E por que está demorando?”
A Petrobras demorou a entregar ao Ibama o Centro de Proteção da Fauna, em Oiapoque. Mas já foi entregue, e agora a licença sai! Que eu saiba, o centro é a primeira obra construída pela Petrobras em solo amapaense, depois de mais de 50 anos de pesquisas realizadas na costa do Amapá.
Para concluir, trago de volta as emoções e as conversas com o chileno de Padre Hurtado, que o tempo e a vida transformaram em executivo da BP. As emoções do reencontro ficaram, mas as conversas nos distanciaram. A BP não atendeu em nada nossa demanda de inclusão local. E hoje, parece que tudo vai se repetir. A Petrobras vai dizer ao governador o que os executivos da BP me disseram em Londres: que a estrutura de suporte à pesquisa está consolidada em Belém e que não é possível mudar.
Resta o consolo: pelo menos, desta vez, o Ibama os obrigou a construir uma obra física em solo amapaense. Que eu saiba, a única.
* João Capiberibe é ex-preso político, ex-prefeito, ex-governador, ex senado. Atualmente é empresário. Ambientalista sempre!