
Em nossa modernidade, um projeto ainda em construção. CRÉDITOS: Divulgação
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24-05-2025 às 09h00
Marcos Noronha*
O texto abaixo enfatiza que, embora a liberdade das instituições no país, tenha apresentado avanços, o poder corrompido atua para sufocá-la, resultando num ciclo complexo que influencia diretamente a percepção e o funcionamento da justiça e da sociedade. Faço também uma analogia da situação social, que ouso em denominar de doença social decorrente da opressão, com o adoecimento individual proporcionado pelo medo patológico. A medida que o indivíduo adoece psiquicamente, o medo funcional, que cumpre funções na vida humana e de outros animais, é substituído por um medo crônico, com alta intensidade, incongruente com o ambiente que acaba por tirar a liberdade. Portanto o fenômeno liberdade, seria próprio tanto de ambientes democráticos saudáveis, como também, próprio de indivíduos saudáveis, permitindo nestes a expressão da espontaneidade.
Na sociedade contemporânea, somos frequentemente conduzidos por estruturas invisíveis de saber e poder. Vivemos sob a influência do conhecimento acumulado — essa “arqueologia dos saberes” — e sob o peso da autoridade — a “genealogia dos poderes”. Curvamo-nos diante daqueles que demonstram domínio do saber, impressionam pela memória e exibem amplo acesso à informação. Já diante dos poderosos, nossa reverência vem do temor, da sensação de impotência frente à autoridade. Esta, por sua vez, utiliza-se de ameaças para convencer, e não de argumentos para mudar seu pensamento. Vou percorrer, neste artigo, o cenário social do Brasil, para demonstrar este fenômeno, para após, mergulhar na expressão do medo e a perda da liberdade entre meus pacientes nas sessões de terapia social.
Nos últimos anos, no entanto, o temor na sociedade brasileira parece ter se alterado. Quando instituições brasileiras como a Polícia Federal e o Ministério Público — especialmente a partir de Curitiba — ganharam autonomia para investigar um braço do sistema de corrupção instalado no país, algo novo surgiu. A partir de 17 de março de 2014, teve início uma operação que se expandiria rapidamente, gerando apreensões, prisões preventivas e conduções coercitivas. O país assistiu, estarrecido, à revelação de esquemas bilionários de corrupção, até então impensáveis para a maioria da população. Essa investigação, que inicialmente ficou conhecida como “Petrolão”, teve como ponto de partida os atos ilícitos do doleiro Alberto Youssef. Com o tempo, a operação foi desvendando redes criminosas complexas e esquemas fraudulentos de gestão pública. O avanço da chamada “República de Curitiba”, impulsionado pela cobertura midiática e pela autonomia conquistada pelas instituições, gerou reações diversas entre as elites políticas. Enquanto alguns queriam barrar o processo, outros — opositores do governo — viam nele uma chance de enfraquecer seus adversários. Na população, estes acontecimentos, a medida que eram anunciados pela mídia, foi criando uma sensação de justiça e esperança e prevalência do bem.
O que se viu, naqueles tempos, foi um raro encontro entre liberdade institucional, inteligência investigativa e coragem ética. Pela primeira vez em muito tempo, os bastidores da cleptocracia brasileira vieram à tona. O cérebro das instituições, por meio da ação coordenada de seus agentes, mostrou, finalmente, seu poder. Mas, ainda assim, nem o sucesso das investigações, nem o desejo de setores poderosos de destruir Lula foram suficientes para garantir uma vitória duradoura. Um movimento paralelo parecia acompanhar esta evolução, procurando dados para destruir os protagonistas do combate da corrupção, já que não era evidente o sucesso nas tentativas de reeditar os fatos. Com uma série de ações nebulosas e autoritárias, Lula, e seus aliados, quando voltaram ao poder — ou cúmplices de um esquema enraizado no país há décadas — foram confrontados pelo despertar do cérebro coletivo da população, que reagiu nas manifestações populares. Numa delas, logo após o Partido dos Trabalhadores as eleições, um movimento pacífico, chamado “patriotas”, espalhou-se pelo país, clamando por ordem, transparência e a restauração da liberdade.
No centro desse embate, o cérebro das instituições anticorrupção, que antes funcionava com autonomia e clareza, viu-se acuado pelo peso do poder que busca controlar, manipular e subverter a justiça. O poder que antes deveria servir à liberdade tornou-se o principal agente de sua restrição, invertendo o jogo e minando a capacidade da mente institucional de agir com independência. Vimos o supremo poder subjugar os outrose a inércia dos representantes do povo prevalecer, a ponto de descaracterizar sua função, na Câmara e no Congresso.Uma campanha difamatória massiva tentou paralisar não apenas as ações, mas a própria essência racional e estratégica daqueles que lideraram o desmantelamento da cleptocracia. A liberdade das operações, base essencial para o funcionamento do Estado de Direito, foi estrangulada pela influência daqueles que detêm o poder real, mostrando que o cérebro por trás dessas manobras age para preservar privilégios em detrimento do interesse coletivo. A manipulação do poder foi capaz de transformara verdade, criada por narrativas, em arma, confundindo o cérebro da sociedade e invertendo valores, criando um cenário em que a dúvida e a desinformação prevaleceram: quem exerce realmente o poder? Quem são os verdadeiros bandidos? E onde está a liberdade que deveria garantir o equilíbrio e a justiça?
Neste jogo de forças, o futuro da liberdade depende do despertar consciente do cérebro social para resistir às garras do poder autoritário e recuperar sua capacidade de pensar, questionar e agir em favor da verdade, ou seja, dos fatos. É sabido que o Direito penal brasileiro, em vez de ser apenas um instrumento para promover justiça, muitas vezes atua como blindagem para criminosos — sobretudo para aqueles que detêm o poder suficiente para manipulá-lo. Esse domínio criminoso, que suspeita-se perpassar os três poderes, revela a face sombria do poder quando utilizado para preservar privilégios, tornando a justiça indigesta e manipulada, especialmente quando ela é articulada fora do centro tradicional do poder, Brasília. As garantias da cleptocracia, que protegiam grupos políticos específicos, foram brevemente quebradas no governo Rousseff, quando a chamada República de Curitiba assumiu a missão de julgar os crimes de corrupção a partir das operações no Paraná. Nesse episódio, o cérebro jurídico e investigativo atuou com autonomia e coragem, rompendo temporariamente as amarras do poder corrupto. No entanto, a persistência da blindagem aos contraventores demonstra que a liberdade de agir do sistema de justiça continua limitada pela infiltração do poder corrupto, que compra consciências e controla funcionários públicos.
No Rio de Janeiro, os exemplos dessa captura do poder pelo crime são evidentes em múltiplos setores. A série “Jogo do Bicho”, disponibilizada em streaming, expõe com clareza o funcionamento dessa máfia italiana à brasileira, sustentada por pactos e uma estrutura que envolve o poder público, onde o cérebro da organização criminosa se alimenta da conivência e do medo. Neste momento histórico, como nunca antes em minha vida, mesmo com as melhores intenções profissionais, escrevo com apreensão sobre o tema polarização. Essa inquietação não é apenas minha, mas traduz o sentimento coletivo de muitos cidadãos que percebem a liberdade ameaçada pela manipulação do poder.
Durante a elaboração do meu livro Polarização – Sintoma de uma Doença Social, contei com o apoio valioso de amigos do meio jurídico, que, mesmo desejando contribuir, demonstraram receio — por temor de discriminação, se por ventura viesse a prestar concursos públicos, ou de retaliações por ocuparem cargos — em terem seus nomes vinculados espontaneamente à obra. Essa autocensura revela o quão frágil está o exercício da liberdade e como o poder pode sufocar não apenas a justiça, mas o próprio pensamento livre e a coragem de enfrentar o sistema. Um dos meus melhores amigos, por exemplo, que mostrou indulgência diante das ações autoritárias da esquerda atual, reagiu mal quando lhe enviei uma interpretação da Constituição feita pelo jurista Ives Gandra, ao ser acusado de incitar o golpe de 8 de janeiro. Meu amigo, embora brilhante, não foi capaz de argumentar nem sobre o conteúdo da defesa do jurista, e muito menos, pela opressão sofrida por ele na instauração do processo. Apenas me preveniu para não postar aquele tipo de informação. Gandra, que ajudou a moldar a Constituição de 1988, agora é tratado como criminoso e golpista, por ler em voz alta, a própria regra construída para proteger uma democracia. E eu, ao decidir compartilhar tal postagem, ou escrever minha obra apontando a distopia da civilização, tendo como base a polarização, estaria sendo subversivo.
Em nossa modernidade, um projeto ainda em construção, a busca por dominar os movimentos sociais muitas vezes nos leva a situações inesperadas e caóticas. Em diversas partes do mundo, a luta pela hegemonia do poder desencadeia crises, onde a comunicação e a percepção da realidade são moldadas pelas particularidades de cada região. Desde os primatas, como os chimpanzés, até os líderes autoritários da história, a busca pelo poder tem sido uma constante. O cérebro, em sua forma mais primitiva, busca estabelecer uma hierarquia, onde o controle e a dominação são os objetivos primários. A história nos mostra exemplos de figuras como Stalin, que eliminaram qualquer um que representasse uma ameaça ao seu domínio, mesmo que fossem amigos próximos. Entre os seres humanos, a necessidade de poder está intrinsecamente ligada a traços narcisistas e psicopatias, como demonstrado nos estudos sobre Hitler e Mussolini. Quando o poder “sobe à cabeça”, a empatia diminui, e a busca por impor os próprios desejos se torna implacável. A pesquisa de Dacher Keltner, da Universidade da Califórnia, revela como o poder desinibe comportamentos e pode levar a abusos. Este psicólogo dirigia o Laboratório de Interação Social de Berkley e escreveu vários livros sobre sentimentos e a busca pelo poder. Sua pesquisa sobre o efeito desinibidor do poder em relação às consequências sociais, nos leva ao inverso, quando consideramos as inibições geradas pelo poder excessivo no comportamento daqueles que forem submetidos.
Na natureza, onde se encontram os primatas necessitados de poder para o controle do grupo, dentre eles os bonobos, também conhecidos como chimpanzés-pigmeus, originários da África, não contam com um líder preciso. Contam com relações hetero e homossexuais, tanto para apaziguar conflitos como adquirir status social e redução de estresse e também recorrem à brincadeiras, para dispersar o tédio. Quando eles encontram outros grupos, ao contrário dos chimpanzés, tendem a estabelecer relações mais amistosas. Se quanto maior a capacidade cerebral, maior é nossa condição de sociabilidade, o ser humano, que deveria ser o campeão neste quesito, sofre gravemente de uma debilidade social. As polarizações denunciaram este fato e é urgente que todos nós criemos uma força tarefa para entender melhor o fenômeno e descobrirmos soluções. Nossa idolatria, ou simpatia desmensurada por ídolos, tornaram os que se comportam com esta necessidade de aclamação, condescendentes e desprovidos de discernimento necessário para boas escolhas. Seduzidos, escolhemos líderes, cujos defeitos e intenções, facilmente seriam condenadas por um pouco de bom senso. Assim aconteceu na Alemanha, estudado por Reich em “Psicologia de Massas do Fascismo”. As características da personalidade de líderes como Hitler, vastamente analisadas por cientista contemporâneos, explicam como estes tendem a castigar aqueles que os criticam, recorrem à reações instintivas de luta e competição, visando a manutenção, a qualquer custo, do poder, e por outro lado, como a sociedade embriagada por ilusões criadas e limitadas por sentimentos egoístas, fazem suas escolhas.
Na Síndrome de Hubris, que se refere ao líder grego que invade Troia e gera uma guerra sangrenta, foi descrita por David Owen, médico inglês atribuindo o quadro a uma desordem capaz de gerar uma depreciação do outro, sem qualquer sinal de piedade, que acomete alguns detentores de poder. Owen, também um ex político, compartilhou este conceito com o psiquiatra Jonathan Davidson atribuindo o quadro ao excesso de poder, como aqueles conquistados na ditadura, onde, em detrimento das instituições, uma figura apenas detém este papel, ao mudar inclusive seus traços de personalidade ao ocupar a posição alçada. Por outro lado, a difícil tarefa de enfrentar o poder vem tempos remotos. O humor é uma delas e já acontecia e recebia reflexões na antiga Grécia. O bobo da corte, o bufão, por exemplo, era um recurso para fazer as pessoas se divertirem e que, podia exclusivamente, usar elementos dos poderosos, como ninguém poderia naquela época. Trata-se de um funcionário da monarquia para entreter os reis e rainhas, mesmo que para isso os “desempoderavam” com suas piadas, nos espetáculos para um público seleto. Acontecia que mesmo um rei rigoroso, nestas condições, permitia o bobo da corte atuar sem correr riscos. Mesmo que o humor possa atenuar as tensões nos espaços polarizados, sei da tênue linha, que separa a piada, geradora de alegria, por algo que parece ofender e entristecer algumas pessoas. Que bom se pudéssemos rir das nossas próprias escolhas equivocadas.
Um dos momentos mais opressivos da história do mundo ocorreu durante a Guerra. Após a Segunda Guerra o mundo seguiu com a divisão de alguns países, por ideologias diversas a partir dos vencedores e a Coréia foi dividida, com o Norte ficando sob administração dos comunistas, e o sul com apoio dos países democráticos. Tal conflito coreano iniciou-se em 1950, quando os norte-coreanos, buscando a reunificação do país, invadiram o sul. O resultado foi o aumento da tensão entre essas regiões, de povos irmãos, com famílias divididas pela arbitrariedade política e muitas mortes ocorreram. Cerca de 1.5 milhões de civis e soldados coreanos, além de 54 mil norte-americanos morreram, além das baixas dos aliados à Coréia do Norte. A URSS, com apoio da China, por 3 anos, sustentou essa guerra, enquanto que o sul recebia a ajuda dos EUA e das forças das Nações Unidas. A Coréia do Norte é conhecida pelo regime mais opressor, isolado, sem acompanhar os avanços no planeta, mesmo aqueles dos países socialistas, como a China e União Soviética. O povo norte-coreano, confinado pela ditadura e barreiras impostas pelo ditador, são oprimidos pelo regime. Os que não atendem ao interesse deste regime poderão ser submetidos aos campos de concentração, uma atrocidade que lembra a Alemanha Nazista. Os que tentam fugir através das fronteiras com a China, quando capturados, são devolvidos pelos chineses, aliados da ditadura coreana, para serem condenados na Coréia do Norte. Atualmente, o que se passa neste país, é o maior exemplo de opressão e cerceamento da liberdade do planeta.
A obra de Blaine Harden, “Fuga do Campo 14”, relata esse regime a partir da fuga de um norte-coreano que nasceu e se criou dentro do campo de concentração. Shin havia sido condenado a prisão perpétua e a ter que se submeter aos campos de trabalho forçado, pelos supostos delitos cometidos por seus pais. Fruto de um casamento arranjado entre dois prisioneiros, recompensados com a permissão de dormirem juntos pelo bom comportamento, a criança raramente via seu pai. Viveu numa parte do campo de internamento de Kaechon, com sua mãe até seus 12 anos. Tinha um irmão, mas não estabeleceu relações de afeto com ele. Por outro lado, sua mãe disputava com ele, porções de alimentos e praticamente, lhe parecia uma rival. A violência era algo corriqueiro no Campo, onde parte de seu dedo foi arrancado por um supervisor, quando, acidentalmente, estragou uma máquina de costura. Aprendeu a sobreviver comendo ratos, insetos e viu muitos colegas, serem torturados. Tal criança foi condicionada a sentir vergonha dos próprios pais, considerados pelo regime, traiçoeiros do país. Trata-se de uma obra com relatos chocantes, que nos permite conhecer do que é capaz o ser humano. Shin chegou a denunciar sua mãe e seu irmão, quando eles planejaram fugir do campo, sem incluí-lo. Havia sido estimulado a fazer este tipo de denúncia, mas ao invés de obter uma recompensa, foi torturado para que fornecesse maiores informações.
Mesmo que seja um exemplo extremo, tal relato da vida de uma criança crescendo sem a proteção de pessoas ou das estruturas sociais, mesmo diante das crueldades naquele campo de concentração, correu riscos para poder escapar. Shin Dong-hyuk foi o único prisioneiro a escapar do Campo 14, londe a fuga parecia impossível e onde havia passado cerca de 23 anos de sua vida. O local fica incrustado nas montanhas íngremes, localizadas cerca de 80 km ao norte de Peyongyang, a capital do país, sendo destinado aos presos políticos considerados irredimíveis. Shin, pôde superar as diversas barreiras e as cercas eletrificadas, em sua fuga e acabou trazendo para o mundo, além de suas cicatrizes pelas torturas sofridas, a brutalidade do cotidiano na Coréia do Norte. Quando foi resgatado, contou como foi sua infância, onde nenhum tipo de amor havia sido trocado, revelou seus segredos, seus sentimentos de culpa e a insensibilidade que desenvolveu. Uma pessoa conhecedora destes fatos poderia, mesmo assim, ainda apoiar regimes parecidos ao da Coréia do Norte, e os países que a sustenta? Quem seria cúmplice de um regime como este?” O jornalista americano Harden, faz um relato pioneiro com detalhes do cotidiano daquelas condições. Ressaltou, também, o trauma sob uma criança sendo forçada a assistir a execução pública de sua mãe e seu irmão, sabendo ser ele o responsável, por tê-los delatados. Hoje Shin Dong-hyukvive nos EUA e tornou-se um ativista dos direitos humanos, num país onde há liberdade, em contraste com o que enfrentou durante toda sua vida.
Sentimentos diante das atrocidades na Coréia do Norte, ou diante da brutalidade dos Nazistas e diante dos excessos do STF sobre os manifestantes no Brasil, tem algo em comum? Se não estivermos alijados por uma paixão fanática, abominaremos todos estes atos. Num outro exemplo cruel, de alijamento da liberdade, contado por Viktor Frankl refletindo sobre o que se passou nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, o destaque da apatia que tomou conta das vítimas e que, gradativamente, foi destruindo as pessoas, é evidente. Mesmo que tudo parecia insuportável – os odores, assistir a tortura dos demais, a dor psicológica e a revolta pelos sentimentos de injustiça é a que mais destruía. A medida que somos privados de nossas necessidades existenciais, gradativamente, vamos sofrendo uma frustração inconcebível. O homem sempre estará fazendo um movimento para melhorar as condições de vida que possui, atrelado a ética e a justiça. A justiça, por sua vez, é dinâmica e adapta-se às mudanças da sociedade numa nação que conta com a democracia.
Os sentimentos de grande parte da população brasileira, no início de 2023, foi de desilusão. O governo, ao invés do esclarecimento do conflito em 8 de janeiro, parecia se utilizar do episódio para fins de opressão popular e obter condições para governabilidade.
Uma sociedade decepcionada, perde as esperanças e compromete seus caminhos para encontrar a felicidade. Neste caso, podemos falar em neurose social decorrente dos acontecimentos que afligiram tal sociedade. Não seria exagero denominar estes casos, de desesperanças, de uma psicopatologia endêmica, pela falta coletiva de qualquer estímulo por uma justiça social. Ocorre a perda de sentido na vida, uma vez que a injustiça social tem um alto grau deletério e patogênico sobre todos nós. Mesmo uma sociedade, produzindo mais do que seu poder de consumo, ainda assim, seus membros podem sofrer diante da injustiça. São capazes de reconhecer a segurança proporcionada pelos recursos para se viver, mas lamentam ao conceberem não terem motivação pelo quê viver.
O ato de tirar a liberdade de um ser, por si, lhe causa um prejuízo. Na criação dos nossos filhos, onde com intuito de protegê-los cerceamos sua liberdade, os bons genitores sempre estarão abertos a negociação, pois sabem da importância deste aspecto. Assim, têm a chance de convencer, ao invés de impor. O sentido da vida vai se modificando para a sociedade, onde os mais saudáveis vivem em constante busca de novas metas e ações. São estimulados a experimentar o diferente, movido por curiosidades e desejos por conhecimento. Superam os percalços com apoio e solidariedade de seu grupo. Conectados entre si, os membros de uma sociedade sempre encontrarão um escape para se consolar, diante de grandes perdas, por exemplo. Liberdade, condição preservada nos regimes democráticos e almejada por todos, permite ao homem criar, além de produzir uma sensação agradável, comparada com a repressão, que provoca o seu oposto. O livre arbítrio provoca estas mesmas sensações, mas ao contarmos com nossa liberdade temos também a obrigação de nos responsabilizarmos por nossas decisões. Decidir algo, contando com liberdade, estar diante da decisão de outra pessoa, qualquer que seja o caso teremos consequências que direcionarão nossas emoções. Todos nós podemos apresentar receio diante de importantes decisões a serem tomadas, no exercício de plena liberdade.
O Brasil, vivendo hoje uma inversão de valores, conta com a ingenuidade da sociedade diante da armadilha veiculada pelos meios de comunicação e os mecanismos para entender este fenômeno é diversificado e complexo. Conta-se com vários meios de tentar convencer a sociedade e algo é bom ou ruim. Cria-se algo, através da propaganda, com se fosse a extensão de nós mesmos, para ser bem recebido. Ou, com a propaganda, associa-se a algo consagradamente agradável e de valor. Da mesmo forma, associar o produto à expressões ruins, ou postar uma foto do político, com graves expressões, pode provocar um efeito contrário e levar o eleitor a rechaça-lo. A questão é, como divulgar com imagens ou palavras, algo para dar impressão de poder e empatia; prazer e recompensa; insegurança ou confiança. Na Tanzânia, onde estive e fiz episódios para meu programa no YouTube, Psiquiatria Sem Fronteiras, falei dos Massai, mas não contei sobre os Hadzas, uma sociedade que não passa de mil pessoas, onde metade vivem ainda como caçadores-coletores. Trata-se de um povo receptivo, onde não existe pobres e nem ricos, ou seja, não possuem propriedades.Alegres, parecem contar com recursos menos violentos para resolverem suas diferenças. Só tomam banho quando chove (e parece nunca chover naquela região), além de adorarem caçar, atividade exclusivamente dos homens, ficam horas sem comer e não sofrem de obesidade. Estes povos nativos vivem na simplicidade e os animais que capturam, na maioria são roedores, mas adoram comer macacos e porcos selvagens, embora uma das iguarias que consomem é o mel encontrado no interior de caules das árvores. Este povo não tem religião, mas acreditam no sol, talvez como um tipo de animismo para direcionar a espiritualidade desta sociedade, e na tribo não existe energia elétrica, apenas gozam de uma destacadaliberdade.
Se fizermos uma reflexão sobre os conflitos humanos, entenderemos que muitos deles estão relacionados a disputa de territórios. Um contraste com os hadzas na Tanzânia e sua forma de viver. Talvez, um dos primeiros indícios de civilização e brigas por disputas territoriais estejam na Mesopotâmia, em Acádia, uma cidade de um império multiétnico que reunia semitas, sumérios e outros. Não teve longa duração, mas pode ter sido o primeiro que se teve notícias, cujos povos deixaram seus descendentes, onde hoje fica o Iraque e o Kuwait. Ao descrever a função dos ritos, no livro “Terapia Social”, recorri a paleontologia que descobriu cemitérios, onde corpos humanos eram enterrados, juntamente com alguns animais. Presume-se que, já naquela época, se faziam rituais, como forma de criar espaços para que as pessoas pudessem compartilhar a ansiedade social com o resto da comunidade, previstos para os momentos em que enfrentavam a morte de entes queridos. Comparando assentamentos humanos, com sociedades caçadoras coletoras que se deslocam constantemente, dentre os assentados temos mais condições de observarmos vestígios de como eram sua convivência, como é o caso do estudo feito na Mesopotâmia, localizada entre o Tigres e Eufrates. O aprimoramento da civilização, contribui com conforto, segurança e conhecimento, mas acrescenta cada vez mais, regras que diminuem a liberdade de seus integrantes, que precisam, por sua vez, contar com novas regras para garanti-las.
Em neurociência tentamos descobrir qual a tendência, considerando o funcionamento cerebral do homem, quanto a este quesito, de buscar um lugar para viver e se proteger. Temos ou não, um instinto gregário? Temos ou não, um interesse particular em nos estabelecermos num determinado local? Diante do perigo e da desconfiança, o córtex da ínsula, ou o cingulado anterior, ficam ativados. No livro “O Cérebro Social”, Michael Gazzaniga conta que o lóbulo cingulado posterior e o lóbulo pré-frontal anterolateral ficam ativados e propicia a possibilidade de socialização com pessoas ou grupos estranhos. Sabemos que o sistema límbico guarda memórias emocionais, que nos previnem do perigo, tendo a amígdala, numa posição importante para esta função. Evidentemente não cabe somente ao cérebro, mas a um conjunto de fatores determinantes de nosso comportamento para evitação ou apego, como, dentre eles, hormônios importantes, dentre eles a ocitocina, a vasopressina e a adrenalina. Todo este conhecimento não é desprezado pelo mercado, cujo objetivo é tentar conquistar novos clientes de forma prática e massiva, para se obter lucro. Diante do perigo, provavelmente o homem é estimulado a se unir, uns com os outros, ou criar locais protegidos para viver com liberdade.
O aparecimento da espécie humana, pode remontar há 400 mil anos, sendo o homem um primata que pode ter decido das árvores e tornou-se bípede, para colher alimentos no solo, e com isso acabou se expondo aos perigos diante de maior número de predadores, do que tinha nas alturas. Provavelmente por cerca de 200 mil anos, tentou deixar o continente africano, documentado há cerca de 75 mil anos, penetrando na Eurásia, como Homo erectus, Homo neandertal e finalmente Homo sapiens. Somos, como são alguns animais, capazes de deslocarmos longas distâncias e para isto temos que ser o menos pesado possível. Suamos mais que animais peludos, o que pode ser um recurso para condicionamento da temperatura do corpo humano. Os principais elementos responsáveis pela expansão do Homo sapiens pelo planeta são o fato de termos nos tornado bípedes, deixando livres nossas mãos e desenvolvermos nossos cérebros e a linguagem. Nesta lista, inclui também nossa tendência a sociabilidade e a criação de recursos tecnológicos para nossa proteção, além da conquista da produção de alimentos e desenvolvimento de locais para moradias protegidas. Podemos ainda considerar a tecnologia para a criação de armas, tanto para abatermos animais, visando a alimentação, como para combatermos uns aos outros em diversos tipos de disputas. Aprendemos com isso a arte de dominar, também, membros de nossa própria espécie. Mas se a questão for, se somos ou não seres violentos, considerando que destonamos de outros animais que não atacam por atacar, ou simplesmente não destroem membros de sua própria espécie, teremos que ampliar nossa reflexão.
Se o homem, no decorrer de sua trajetória, cerca de 10 mil anos, passou de caçador-coletor para se instalar numa determinada região, contou com sua tendência gregária, se dedicando, inicialmente, a agricultura e posteriormente a criação de animais. Foi os primórdios de nosso comportamento sedentário e de disputas territoriais, que cresceu com o aumento da população. Comparando chipanzés, mais agressivos, com os bonobos, mais pacíficos, cientistas tentaram encontrar um marcador genético da empatia, culpa e confiança em regiões relacionadas a sociabilidade, que apareceram nos segundos, mais próximos do que acontece também no ser humano. Será que, o ser humano, que viveu na maior parte de sua existência como caçador-coletor, sem ter que defender sua propriedade, necessitando da cooperação coletiva para encontrar alimentos, como os hadzas, ao dominar a agricultura e se instalar num território passou a ser um bicho ruim?
A ocupação territorial, a busca pelo poder e domínio, pode ser algo recente e desencadeador da violência que estamos percebendo, aumentando cada vez mais em nossa sociedade? De fato, indícios de batalhas e vítimas bélicas começaram a surgir, cerca de 12 mil anos no Sudão, e persiste hoje no tenebroso conflito envolvendo dois exércitos rivais. Um deles é do general Abdel Fattah al-Burhan e o grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido do general Mohamed Hamdane Dagalo, um exemplo atroz do que estamos falando. Evidentemente entre animais não teremos uma lógica de guerra nos termos humanos, planejada, organizada, determinada pelos dominadores e acatada pelos dominados. Na atualidade, exemplos recentes se destacam como a invasão russa na Ucrânia e os ataques do Hamas em Israel, mas não são os únicos. Comumente, em grupos arcaicos e sociedades tradicionais, estâncias e rituais são destinadas a solução de conflitos, cuja duração possa não ser do interesse de nenhuma das partes. Além do mais, diante das possibilidades de conflitos, o mundo civilizado criou alternativas para inibi-los, como casamentos intergrupais e uma série de cooperação, hoje, principalmente, o mercado tem papel preponderante. Se formos nos ater ao cotidiano da sociedade, poderemos reparar nos diversos espaços capazes de integrar as pessoas. Esta integração, diminui o desamparo e equilibra os estados emocionais. Porém, a sociedade moderna, com alterações de alguns valores, enfraqueceram seus integrantes, propiciando a aumento significativos das doenças emocionais.
Quando no Brasil, comemoramos cerca de 30 anos da Terapia Comunitária iniciada no nordeste e da Terapia Social a partir da região sul, reunimos dados suficientes para entender que a técnica reúne algo também compensatório, ao integrar uns com os outros. Compensamos o distanciamento promovido pelo mundo moderno, e a insuficiência das opções digitais no acolhimento de nossa espécie. Estes ambientes, por exemplo, facilitam o compartilhamento do medo estabelecido com o adoecimento, interferindo no comportamento. A pessoa não é afetada por um medo funcional, capaz de promover uma postura melhor, mais cuidadosa, mas acaba sendo ferida por um outro tipo de medo, intenso, rígido e incapacitante. Os pacientes descrevem sensações de medo, para atos simples, jamais experimentado por eles mesmos, como sair de casa para encontros, mesmo que prazerosos e promissores. Foi o caso de uma paciente, que contou com a identificação de outra, pelo simples fato de deixar sua propriedade, para se reunir conosco naquela sessão.
Já, num processo psicoterápico evoluído, outra paciente, num dos grupos de Terapia Social no Hospital da Polícia Militar em Florianópolis, gerente de uma empresa e cheia de ambições, descreveu como iniciou a superação do seu estado depressivo incapacitante. Seus subalternos, quando se afastavam do trabalho, acumulavam tarefas sobre ela, e aumentava seu sofrimento. Ela sabia que precisava modificar sua postura, mas não conseguia.Prezava pelo seu emprego, também por necessidade de sobrevivência, ao mudar-se para a nova cidade e reagia com inconformação e raiva diante das consequências das faltas dos colegas. Sentia-se desamparada pela empresa, neste caso, e solicitava ações mais justas aos seus superiores. Como imigrante, que curiosamente, tem cinco vezes mais probabilidade de adoecer por depressão, comparado com os autóctones, encontrou na Terapia Social um espaço de acolhimento, onde passou a compartilhar seus dilemas, na nova cidade onde veio morar. Somado aos efeitos do psicotrópico, sinergicamente capaz de diminuir seus temores e ansiedade, adotou um novo paradigma, para decidir por uma postura mais saudável. Com esta postura, substitui, gradativamente, o temor incapacitante, por atitudes e movimento. Decidiu não mais ficar enfurecida, passando apenas a lamentar o excesso de trabalhos sobre ela; compartilhou também, com seus superiores, o que sentia. Passou a não esperar pelas soluções da empresa e decidiu por contar com a liberdade de compensar as horas que, compulsoriamente teve que dedicar à empresa, com momentos em que se dedicou à família.
Estes exemplos acima, expressam como a desesperança, diante de opressão, pode adoecer o indivíduo e toda uma sociedade. Também expressam a constante busca do homem pelo conhecimento e oaprimoramento, mesmo que incapaz de desvencilhar da necessidade de relacionamentos com os outros. O poder, que decide pela crueldade para se estabelecer, é perverso sobre as vítimas, mas também isola e apodrece os tiranos. A tarefa de optarmos pelo convencimento requer paciência e saúde para enfrentarmos expectativas não contempladas, e coragem para não desistirmos das liberdades, que, para sobreviverem, precisam caminhar de mãos dadas com o respeito.”
Marcos Noronha é Psiquiatra Titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Conselho Federal de Medicina
Psicoterapeuta e Psicodramatista reconhecido pela Federação Brasileira de Psicodrama.
Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural. Membro da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural. Associado da Seção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria. Membro do Grupo Latino Americano de Estudos Transculturais (GLADET).