
Cisnes Negros - créditos: divulgação
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29-04-2025 às 14h14
Marcelo Barros (*)
A imprevisibilidade dos grandes eventos e a vulnerabilidade crescente de um Estado que negligencia o pensamento de longo prazo. O conceito de “Cisne Negro”, elaborado por Nassim Nicholas Taleb, descreve eventos raros, imprevisíveis e de enorme impacto, que, após ocorrerem, são racionalizados como se fossem óbvios e previsíveis. Em tempos de incerteza global, o desprezo pelo planejamento estratégico pode expor o Brasil a riscos geopolíticos, militares e econômicos potencialmente catastróficos. Esta análise busca discutir como a ausência de políticas de Estado — em substituição a políticas de governo de curto prazo — fragiliza a defesa nacional diante dos “Cisnes Negros” do século XXI.
O conceito de Cisne Negro, imortalizado por Nassim Nicholas Taleb em seu livro homônimo, descreve eventos que possuem três características principais: são imprevisíveis, causam impactos profundos e, após sua ocorrência, são racionalizados de maneira retrospectiva, como se fossem mais previsíveis do que realmente eram. Essa tríade define uma das maiores armadilhas do comportamento humano no campo da análise estratégica: o erro da retrospecção.
Historicamente, até a descoberta da Austrália pelos europeus, acreditava-se que todos os cisnes eram brancos. A simples visão de um único cisne negro, portanto, desmantelou séculos de suposição baseada em evidências limitadas. Taleb utiliza esta metáfora para ilustrar como construímos nossos conhecimentos a partir de experiências passadas, ignorando a fragilidade de tais inferências diante do desconhecido.
A retrospecção – a tendência de, após um evento, acreditar que ele era previsível e inevitável – gera um perigoso viés de ilusão de compreensão. Depois que um grande evento ocorre, analistas, políticos e a própria sociedade constroem narrativas explicativas que dão uma falsa sensação de controle sobre o passado e, por consequência, sobre o futuro. Este fenômeno compromete a capacidade de uma nação de se preparar para aquilo que realmente importa: o imprevisível de grandes proporções.
Na seara da defesa nacional, isso é particularmente grave. A história militar está repleta de exemplos de eventos que, embora óbvios em retrospecto, pegaram os países de surpresa: o ataque a Pearl Harbor (1941), a Queda do Muro de Berlim (1989), os atentados de 11 de setembro de 2001 e, mais recentemente, a pandemia de COVID-19 em 2020. Cada um desses episódios ilustra como sistemas complexos — como as relações internacionais, os mercados financeiros e as estruturas sociais — são vulneráveis a rupturas súbitas.
Para Taleb, um dos maiores erros é confiar demais em modelos preditivos baseados em séries históricas que, por definição, não capturam o inusitado. O que chamamos de “normalidade” é, muitas vezes, apenas uma aparência frágil sustentada até que o próximo Cisne Negro destrua as premissas estabelecidas.
Aplicado ao Brasil, essa compreensão deveria servir como um alerta urgente: confiar na estabilidade percebida do sistema internacional, da segurança regional ou da economia global é ignorar a natureza verdadeira da realidade em que vivemos. A preparação contra Cisnes Negros não passa por tentativas ingênuas de previsão, mas pela construção de resiliência estratégica — um princípio ainda negligenciado em muitas políticas públicas nacionais, especialmente na área da defesa.
O ambiente global contemporâneo se tornou, por múltiplos fatores interligados, um verdadeiro viveiro de Cisnes Negros. Nunca antes a humanidade operou sistemas tão interdependentes, complexos e opacos — condições ideais para que eventos improváveis causem impactos desproporcionais.
A globalização, a revolução tecnológica e as mudanças nos equilíbrios geopolíticos aumentaram não apenas a frequência, mas também a intensidade dos choques sistêmicos. A ilusão de estabilidade e controle, promovida por indicadores de curto prazo e análises tradicionais, mascara a real vulnerabilidade estrutural da ordem internacional.
A pandemia de COVID-19 revelou de maneira brutal como a saúde pública global é um sistema de fragilidade extrema. A disseminação exponencial de um vírus até então desconhecido — originado provavelmente de uma zoonose — provocou o colapso simultâneo de economias, sistemas hospitalares e cadeias de suprimentos.
O que se aprendeu? Que o mundo é altamente sensível a eventos biológicos raros e que a imprevisibilidade sanitária continuará sendo uma ameaça estratégica relevante no século XXI.
A preparação para pandemias futuras exige não apenas capacidade médica, mas também cadeias de suprimentos resilientes, soberania tecnológica e planejamento interagências — áreas ainda frágeis no Brasil.
O advento dos conflitos híbridos — que combinam guerra convencional, operações cibernéticas, desinformação, sabotagem econômica e pressão diplomática — criou um novo teatro de operações onde o inimigo é muitas vezes invisível, e as fronteiras entre paz e guerra são deliberadamente borradas.
Casos como:
· A manipulação de informações durante as eleições de diversos países.
· Ataques cibernéticos a infraestruturas críticas (hospitais, redes elétricas, sistemas financeiros).
· Operações de guerra econômica veladas por sanções e embargos seletivos.
Esses fenômenos demonstram que estados-nação e atores não estatais aprenderam a explorar as vulnerabilidades sistêmicas sem recorrer a conflitos abertos.
O Brasil, inserido num cenário regional e internacional cada vez mais competitivo, não está imune a esses riscos — especialmente considerando sua posição estratégica no Atlântico Sul e seus vastos recursos naturais.
A dependência de cadeias logísticas complexas e internacionalizadas, que funcionam “just in time”, expõe países à paralisia em caso de interrupções. Desde semicondutores até medicamentos, a escassez de insumos críticos durante crises recentes mostrou que a soberania logística é um imperativo estratégico negligenciado.
No caso da Defesa, a dependência de peças e sistemas estrangeiros — para manutenção de aeronaves, navios, radares, armamentos — torna o país vulnerável a bloqueios comerciais ou instabilidade geopolítica.
Eventos climáticos extremos — secas severas, inundações, furacões, incêndios florestais — estão se tornando mais frequentes e imprevisíveis.
As mudanças climáticas atuam como multiplicadoras de ameaças, potencializando crises migratórias, insegurança alimentar, conflitos territoriais e pressões humanitárias.
O Brasil, com sua vastidão territorial e biodiversidade única, enfrenta ameaças específicas:
· Avanço de desertificação em áreas críticas do Nordeste.
· Pressões internacionais sobre a soberania da Amazônia.
· Vulnerabilidade das populações ribeirinhas e costeiras.
Ignorar essas dinâmicas é ignorar uma fonte poderosa de Cisnes Negros estratégicos.
A aceleração exponencial das tecnologias disruptivas — inteligência artificial, computação quântica, biotecnologia, internet das coisas — amplia as possibilidades, mas também os riscos.
· IA autônoma mal controlada pode provocar colapsos financeiros, militares ou sociais.
· Biotecnologia pode ser usada tanto para curar quanto para criar agentes biológicos letais.
· Infraestruturas inteligentes podem ser hackeadas, paralisando cidades inteiras.
O ciclo tecnológico é tão rápido que regulações e doutrinas éticas não conseguem acompanhar o ritmo da inovação, abrindo espaço para desastres inesperados de alta magnitude.
Um dos insights mais provocadores de Nassim Nicholas Taleb é a constatação de que os riscos mais perigosos são muitas vezes invisíveis até se materializarem. Este fenômeno é descrito como o “paradoxo da invisibilidade dos riscos”: aquilo que ameaça a sobrevivência de sistemas complexos é, paradoxalmente, aquilo que é sistematicamente ignorado ou subestimado.
Taleb define essa categoria como “Silent Risks” — riscos silenciosos — aqueles que se acumulam gradualmente, sem disparar alarmes perceptíveis, até que se manifestam de maneira abrupta e devastadora. A incapacidade humana de reconhecer esses riscos decorre de diversas falhas cognitivas e estruturais:
A tendência psicológica de esperar que o futuro se pareça com o passado recente cria uma perigosa sensação de estabilidade.
Quando longos períodos de calma se sucedem, assume-se — erroneamente — que a estabilidade é o estado natural do sistema, e não uma condição frágil e transitória.
Assim, quanto mais tempo passa sem uma crise, mais vulnerável o sistema se torna, pois os sinais de alerta são desconsiderados e a preparação diminui.
Exemplo prático:
Antes da crise financeira de 2008, a ausência de grandes colapsos nos mercados globais alimentou a crença generalizada na eficácia dos modelos financeiros e no “fim dos ciclos de crise”. O resultado foi uma das maiores falências da história — a do Lehman Brothers — e um abalo sísmico no sistema financeiro mundial.
Sistemas complexos, como a segurança nacional, não colapsam porque algo óbvio falhou, mas porque elementos ocultos e interdependentes entraram em colapso de maneira simultânea.
A nossa propensão natural é focar apenas nos riscos que podemos ver: conflitos armados tradicionais, invasões territoriais clássicas, ameaças tangíveis.
Enquanto isso, riscos de natureza silenciosa — ataques cibernéticos, erosão do capital humano, dependência tecnológica estrangeira — evoluem sem o devido escrutínio.
Taleb nos adverte:
“O que você não vê pode te matar. O que você vê tende a ser inofensivo.”
Em contextos políticos, riscos que não oferecem dividendos eleitorais imediatos são frequentemente ignorados. A lógica de maximizar ganhos políticos de curto prazo mina a capacidade de investir em defesas contra ameaças que podem levar décadas para se concretizar.
Assim, investimentos em:
· Projetos de modernização das Forças Armadas.
· Programas de defesa cibernética robusta.
· Pesquisas estratégicas de inovação tecnológica.
são frequentemente preteridos em favor de medidas de impacto rápido e visibilidade pública, como obras de infraestrutura ou programas assistenciais de curto ciclo.
Essa dinâmica cria o que Taleb chama de “fragilidade acumulada“: quando finalmente confrontado com o Cisne Negro, o Estado se descobre desprotegido e incapaz de responder à altura da ameaça.
4.4 Riscos silenciosos para o Brasil
O Brasil possui, hoje, uma série de riscos silenciosos que são subestimados no debate público e político:
· Vulnerabilidade marítima: Apesar de 95% do comércio exterior passar pelo mar, as capacidades de patrulhamento e proteção da Amazônia Azul ainda estão muito aquém das necessidades estratégicas.
· Dependência energética externa: A crescente necessidade de importação de combustíveis e fertilizantes expõe a segurança alimentar e energética do país a choques externos.
· Ciberinsegurança estatal: Órgãos públicos, infraestruturas críticas e empresas estratégicas frequentemente carecem de proteção adequada contra ataques cibernéticos sofisticados.
· Baixa capacidade de mobilização nacional: A falta de uma doutrina eficaz de mobilização civil e industrial em caso de emergência limita a capacidade de resposta a crises de grande escala.
Esses riscos, invisíveis à maioria da população e dos tomadores de decisão, são as vulnerabilidades que mais provavelmente serão exploradas em um cenário de ruptura internacional ou conflito híbrido.
Frente ao cenário de incerteza e a incubação contínua de Cisnes Negros no ambiente global, torna-se imperativo que o Brasil adote uma postura estratégica que transcenda os ciclos políticos e eleitorais. A construção de resiliência nacional não é um projeto de governo — de duração efêmera —, mas uma política de Estado, permanente e adaptativa.
Uma das distinções centrais no campo da análise estratégica é entre política de governo e política de Estado:
· Política de governo é aquela vinculada a mandatos específicos, moldada pelas prioridades ideológicas ou eleitorais de quem detém o poder temporariamente.
· Política de Estado é contínua, perene e visa garantir interesses nacionais vitais independentemente das mudanças administrativas.
Na área de defesa, segurança, tecnologia estratégica e infraestrutura crítica, a lógica deve ser de continuidade e atualização progressiva, não de ruptura ou recomeço a cada novo governo.
A ausência dessa continuidade em setores-chave cria brechas que podem ser exploradas por atores externos ou agravadas por eventos inesperados, colocando em risco a própria soberania.
Diversos países reconheceram, historicamente, a necessidade de planejamento estratégico de longo prazo para sobreviverem em um mundo imprevisível:
· França: Adota o Livre Blanc de Defesa e Segurança Nacional, um documento revisto periodicamente que estabelece as grandes orientações estratégicas do país para décadas futuras.
· Estados Unidos: Desenvolvem o Quadrennial Defense Review (QDR) — atualmente substituído pelo National Defense Strategy — para analisar ameaças emergentes e alinhar capacidades de longo prazo.
· China: Trabalha com planos de 50 e 100 anos, projetando cenários estratégicos que ultrapassam gerações, consolidando uma doutrina de fortalecimento gradual, mas contínuo, de sua posição global.
Esses exemplos revelam que pensar estrategicamente é, antes de tudo, pensar além do próprio mandato, algo que, infelizmente, ainda é raro no contexto político brasileiro.
Dentro de uma política de Estado voltada à resiliência estratégica, instrumentos como simulações de cenários, jogos de guerra e análises contrafactuais tornam-se indispensáveis.
O Laboratório de Simulações e Cenários da Marinha do Brasil, por exemplo, é uma iniciativa que ilustra a capacidade de pensar em futuros alternativos e preparar respostas adaptativas diante de eventos de baixa probabilidade e alto impacto.
A prática de simular não apenas o que é provável, mas principalmente o que é improvável, permite desenvolver:
· Planos de contingência realistas.
· Capacidade de improvisação estratégica.
· Aceleração da tomada de decisão em cenários de ruptura.
Sem tais exercícios, as instituições tendem a ser lentas, reativas e ineficazes diante de crises de grande magnitude.
Para construir uma estrutura de Estado verdadeiramente resiliente frente aos riscos contemporâneos, seria necessário:
· Estabelecer um Conselho Nacional de Resiliência Estratégica, composto por civis e militares, com mandato independente para avaliar continuamente as vulnerabilidades do país.
· Criar um “Livro Branco Brasileiro de Riscos Sistêmicos”, atualizado periodicamente, mapeando ameaças tradicionais e emergentes (inclusive cibernéticas, climáticas e biotecnológicas).
· Desenvolver Programas de Mobilização Nacional, capazes de integrar rapidamente os setores público, privado e acadêmico em resposta a emergências.
· Blindar programas estratégicos essenciais (defesa, ciência, tecnologia, energia) contra volatilidades orçamentárias de curto prazo, via fundos soberanos ou mecanismos de financiamento dedicados.
· Educar a sociedade para a cultura da resiliência, através de campanhas públicas que enfatizem a importância da preparação coletiva e da antifragilidade.
Sem essas bases sólidas, o Brasil permanecerá vulnerável, não por falta de capacidade — mas por falta de visão.
O Brasil vive, como o mundo, uma era marcada pela imprevisibilidade extrema e pela complexificação das ameaças.
À luz da teoria dos Cisnes Negros de Nassim Nicholas Taleb, fica claro que os maiores perigos que rondam a estabilidade nacional não são apenas aqueles que conseguimos enxergar — como ameaças militares convencionais —, mas também os riscos silenciosos e sistêmicos que se acumulam sob a superfície de aparente normalidade.
Ao negligenciar o planejamento estratégico de Estado, substituindo-o por iniciativas fragmentadas, descontínuas e submetidas a ciclos políticos curtos, o Brasil expõe sua soberania, sua segurança e seu futuro a choques que podem ser fatais.
A ausência de continuidade em programas de defesa, a vulnerabilidade cibernética, a dependência tecnológica e a incapacidade de mobilização rápida em tempos de crise são sintomas de uma fragilidade estrutural que, se não corrigida, poderá ter custos irreparáveis.
A realidade contemporânea exige uma mudança profunda de mentalidade: não é possível prever todos os Cisnes Negros, mas é perfeitamente possível preparar-se para resistir a eles.
Isso implica construir estruturas resilientes, flexíveis e capazes de absorver impactos severos sem colapsar — um projeto que transcende governos e pertence à própria essência do Estado brasileiro.
Taleb nos lembra que o conhecimento humano é limitado diante da vastidão do desconhecido, e que os maiores erros surgem justamente da arrogância de acreditar que controlamos o futuro.
Portanto, a verdadeira estratégia nacional deve ser construída não sobre ilusões de previsibilidade, mas sobre a humilde consciência da nossa ignorância e a sábia preparação para o incerto.
Ao final, a questão que se impõe ao Brasil não é “se” será confrontado por um Cisne Negro estratégico, mas quando e com que grau de preparação enfrentará o impacto.
O tempo para agir — e construir essa preparação — é agora.
(*) Marcelo Barros é jornalista