O avesso da escola
Diversos fatores impedem que fomentemos, em nosso país, o cultivo da leitura. Crianças e adolescentes já não nutrem, pelos livros, o “amor táctil que votamos aos maços de cigarro”: quando querem estudar ou se entreter, recorrem a mais que duvidosas personalidades do Youtube, do TikTok ou do Instagram.
24-03-2024 às 07h:47
Prof. Philippe de Almeida*
Governos estaduais, por favor, me censurem! Publiquei, de 2018 pra cá, quatro livros “teóricos” – um como autor, um como coautor, e dois como coorganizador. As obras foram lançadas por editoras respeitáveis, tiveram significativa publicidade, mas... à exceção de uma, circularam relativamente pouco.
Diversos fatores impedem que fomentemos, em nosso país, o cultivo da leitura. Crianças e adolescentes já não nutrem, pelos livros, o “amor táctil que votamos aos maços de cigarro”: quando querem estudar ou se entreter, recorrem a mais que duvidosas personalidades do Youtube, do TikTok ou do Instagram. Nessa conjuntura, talvez o único modo de despertar, num jovem, a curiosidade acerca de uma obra seja... proibi-la! Daí meu apelo.
Nas últimas semanas, os governos de três Estados – Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná – resolveram banir, de suas escolas, o romance O avesso da pele, do premiado escritor Jeferson Tenório. Na obra, um jovem reflete sobre o impacto do racismo no cotidiano da população afro-brasileira, a partir da trajetória biográfica de seus pais (suas angústias, seus amores, suas esperanças). Em dado momento, Pedro, o narrador da obra, diz a Henrique, seu pai recém-falecido: “Investiguei os teus afetos através dos meus”. Os afetos de Pedro são os de Henrique, os de Henrique são os de Jeferson Tenório, e os de Jeferson Tenório são os de todos nós, atingidos, em maior ou menor medida, pelas estruturas de discriminação e exclusão que atravessam o Brasil. É nisso que reside a potência do livro – e é a razão pela qual grupos de extrema direita vêm tentando censurá-lo.
Todavia, os esforços para retirar a obra dos currículos e das bibliotecas públicas tiveram efeito diferente do previsto: estimularam estudantes secundaristas a lerem o trabalho de Tenório, por vias “oficiais” ou “extra-oficiais” (sites com versões piratas do texto etc.). No início de março, as vendas de O avesso da pele na Amazon, maior livraria online do mundo, aumentaram em 400%. Como qualquer psicanalista sabe, nada atiça mais o desejo que o tabu.
Ao que tudo indica, a censura não prejudicou a carreira do autor, que se consolida como um dos mais instigantes romancistas de sua geração. Tampouco afetou a vida dos – cada vez mais raros – adolescentes dados à leitura: seguirão pesquisando as obras que os interessam, e ignorando as que não os intrigam, independentemente de qualquer policiamento parental, clerical ou estatal. O episódio, porém, leva-nos a uma triste constatação acerca de nosso sistema público de ensino: nossos gestores não compreendem quais funções a escola pode (e quais não pode) desempenhar na vida dos alunos.
Quando eu era garoto, não havia livrarias ou bancas de revista em meu bairro. Tínhamos duas bibliotecas, a do meu colégio, e a do SESC-MG (a uma hora de distância da minha casa, a pé). Logo, impedir a circulação de um livro na escola significava vetar o acesso a ele. A escola era, à época, nossa principal fonte de informação: quais os novos movimentos artísticos e literários?; quais as mais recentes descobertas científicas?; quais as reviravoltas geopolíticas que têm assombrado nossos estadistas?... Era através de professores e bibliotecários que tínhamos nossos primeiros contatos com os escritos de Lima Barreto, as canções de Itamar Assumpção, os bordados de Bispo do Rosário etc. O professor constituía-se num curador, que selecionava quais conhecimentos eram ou não relevantes para a nossa formação. As instituições de ensino apresentavam, aos estudantes, um mundo além dos quintais de suas casas.
Hoje, crianças e adolescentes sofrem, não pela falta, mas pelo excesso de informações, que nos assolam continuamente, pela televisão, pelo celular, pelo computador... O desafio já não é ter acesso a fontes, mas discriminar quais são confiáveis e quais não são. Assim, toda tentativa de impedir que jovens consultem obras específicas mostra-se risível, sintoma da incapacidade de determinados segmentos se adaptarem àquilo que filósofos como Gonçal Mayos Solsona tem designado como “sociedade do conhecimento”. O livro não se encontra na biblioteca? Vou procurá-lo na Amazon (ou, na pior das hipóteses, no Libgen). Não posso debater a obra em classe? Irei fazê-lo no Telegram, no Discord ou no 4Chan. A crença de que os colégios seguem sendo “repositórios de saber” representa uma visão esclerosada das instituições de ensino. Já não cabe ao professor – ou pior: às secretarias de Educação – facultar ou impedir o acesso dos alunos a textos literários. Nossa missão é outra: estimular nos jovens o “prazer do texto” (na acepção que Roland Barthes dá à expressão).
Atualmente, o maior obstáculo à prática da leitura é o desinteresse. Pais e responsáveis temem que, lendo Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (da brilhante Ana Paula Maia), adolescentes se tornem assassinos de aluguel, ou que, lendo Capão redondo (do genial Ferréz), sejam aliciados pelo tráfico de drogas. Pois o que eu temo é que nossos educandos tenham se tornado imunes aos livros, já não consigam encontrar, nas páginas de Jeferson Tenório, de Ana Maria Gonçalves ou Ricardo Aleixo, uma força que os subverta, os incite a se metamorfosearem. Quando li Me segura que eu vou dar um troço, de Wally Salomão, pela primeira vez, tornei-me outra pessoa: senti que, naquele momento, a “linha de fronteira” entre “meu ser e o ser alheio” havia se rompido. Quantos adolescentes, nos dias que correm, estão genuinamente dispostos a serem interpelados e provocados pelos livros que leem? Aprendi com Rubem Alves – grande filósofo e educador mineiro – que a principal tarefa dos professores é encorajar, nos estudantes, o desejo pelo saber. Virando a escola pelo avesso, devemos fazer da sala de aula um espaço de sedução, de aliciamento, de reencantamento. Nesse sentido, obras “perigosas” (isto é, que escandalizam e perturbam a classe) podem ser aliadas dos docentes, nos esforços para conquistar os corações dos estudantes. Talvez as únicas verdadeiras aliadas. Que, num mundo dominado por Luccas Netto e Spider Slack, as palavras de Jeferson Tenório se entranham na pele dos jovens, mobilizando afetos.
* Philippe é Mestre e Doutor em Direito pela UFMG e professor na Faculdade de Direito da UFRJ.
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Oportuno, atual e alerta para seguir incentivando mudancas no âmbito da educação mais crítica e aberta à realidade.