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Conjunto documental que deu origem ao museu - créditos: divulgação
15-02-2025 às 09h00
Priscila da Costa Pinheiro Boscato (*)
Em 1939, três anos após a doação do Museu Mariano Procópio ao município de Juiz de Fora, Alfredo Ferreira Lage, fundador e primeiro diretor da instituição, inaugurava a seção “Biblioteca-Arquivos”. O evento, que inicialmente havia sido programado para o dia 23 de junho, data em que se comemorava o aniversário natalício de Mariano Procópio, pai de Alfredo, foi adiado para o dia 27, a pedido do prefeito da cidade, Raphael Cirigliano. Os relatórios institucionais atestam que a inauguração do setor contou com a presença de “autoridades locais, professores, jornalistas e grande número de pessoas gradas”. A seção “Biblioteca-Arquivos” constituiu-se no núcleo original dos setores que, atualmente, são denominados Arquivo Fotográfico, Arquivo Histórico, Biblioteca e Hemeroteca.
O conjunto documental que deu origem ao Arquivo Histórico do museu é composto de “autógrafos”, que foram reunidos por Alfredo Lage através de compras ou recebimento de doações. Para a maioria das pessoas, a palavra “autógrafo” encontra-se associada à assinatura de uma personalidade. Entretanto, a definição do termo vai além, já que qualquer item escrito por alguém é um autógrafo. Cartas, documentos, dedicatórias, desenhos, mapas, pensamentos, frases literárias ou musicais manuscritas compõem o universo dos autógrafos, que podem ou não ser assinados.
No século XIX, a prática de colecionar autógrafos se difundiu nos países da Europa e nos Estados Unidos, e a partir do início do século XX, o comércio desses itens se consolidou. Para adquirir uma peça, os colecionadores avaliavam fatores como autoria, temática, data, raridade, procedência e estado de conservação do documento. O colecionador atento se interessava não apenas pela assinatura em si, mas pelo conteúdo do item documental.
A coleção de autógrafos do Museu Mariano Procópio, arrolada no ano de 1944, após o falecimento de Alfredo Ferreira Lage, é formada por diferentes tipos de documentos, produzidos entre os séculos XVI e XX. Tratam-se de cartas, cartões, cartas patentes, poesias, composição musical, desenho e outros, elaborados por personagens brasileiros e estrangeiros, conhecidos nas áreas de história, letras, artes e ciências. Dentre os autógrafos da coleção, constam os de d. João VI, José Bonifácio, rainha Vitória, Solano Lopez, Giuseppe Garibaldi, Gonçalves Dias, José de Alencar, Eça de Queiroz, Victor Hugo, Cabanel, Léon Bonnat, Mendelssohn, Liszt, Martius, Agassiz e Emil du Bois-Reymond. Alguns deles despertam interesse pela antiguidade, como o de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico no século XVI. Outros pela autoria, conteúdo ou forma como foram registrados.
Durante a gestão de Geralda Armond, diretora do museu entre os anos de 1944 e 1980, novos documentos foram sendo incorporados ao Arquivo Histórico. A documentação institucional produzida nesse período informa o recebimento de doações de itens relativos ao império brasileiro e às famílias imperial e Ferreira Lage. Informa, também, a incorporação de documentos relacionados à história, às memórias e personalidades locais. Nesse sentido, a documentação indica uma dupla atuação de Geralda: por um lado, ela deu continuidade ao projeto de memória familiar e monárquica instituído por Alfredo, seu primo. Por outro, promoveu e aprofundou o diálogo da instituição com as memórias regionais – principalmente a partir da inauguração da sala Juiz de Fora, ocorrida em 1950, no contexto das comemorações do centenário do município.
Atualmente, o Arquivo Histórico, que passou a receber tratamento arquivístico somente na década de 1980, é formado por itens documentais agrupados, majoritariamente, em coleções, tais como “Família Imperial”, “Família Ferreira Lage”, “Viscondes de Cavalcanti”, “Pantaleone Arcuri”, “Biancovilli”, dentre outras. Uma coleção pode ser compreendida como a reunião artificial de objetos escolhidos e conservados por uma pessoa ou instituição, pública ou privada. Sua formação resulta de uma intenção e requer a seleção dos itens que irão compor o conjunto a partir de determinados critérios e finalidades variáveis, tornando possível a constituição de um todo relativamente coerente e significativo.
É necessário ressaltar que os arquivos de museus, em geral, possuem duas funções: recolher os documentos produzidos e acumulados no decorrer do exercício de suas atividades e colecionar os documentos de interesse da instituição, de acordo com sua política de aquisição. Cada função possui características e procedimentos próprios, o que inclui diferenças no processamento técnico das informações.
Todo o trabalho realizado no Arquivo Histórico do Museu Mariano Procópio é pautado em ações que visam à preservação, investigação e comunicação do acervo. A higienização, realizada de forma adequada e cuidadosa, e o acondicionamento dos itens documentais, confeccionado com material de qualidade arquivística, próprio para esse fim, fazem parte da rotina do setor. O desenvolvimento dessas atividades possibilita a avaliação do estado de conservação dos documentos e o monitoramento das condições de guarda do acervo.
A identificação, organização e levantamento de dados históricos e outras informações sobre os documentos e as coleções documentais são atividades necessárias para a elaboração dos instrumentos de pesquisa, imprescindíveis à segurança, preservação, acesso, pesquisa e difusão do acervo. Tais instrumentos, que se apresentam na forma de guias, inventários, catálogos e índices destinados ao uso do corpo técnico da instituição e dos consulentes externos, sistematizam informações sobre os itens e as coleções documentais. Além disso, descortinam possibilidades para novas abordagens de questões histórico-culturais. Para tanto, torna-se necessário interrogar o documento e as narrativas nas quais ele se insere: qual é sua origem? Foi elaborado por quem? Para quem? Quando? Em que contexto? Como ele chegou ao museu? Por quê? Quais os usos que a instituição fez e faz dele? Se anteriormente o documento era pensado de forma isolada, como uma peça rara, curiosa ou “sagrada”, hoje ele é compreendido como um objeto gerador de conhecimento.
A preservação de uma coleção documental se justifica pela necessidade de pesquisá-la e comunicá-la aos diversos públicos e às gerações futuras. Ao ser pesquisada e comunicada, a coleção é, ainda, preservada. Eis aí um grande desafio que vem sendo enfrentado pelo Museu Mariano Procópio na atualidade: preservar, investigar e comunicar seu acervo arquivístico, de modo que ele possibilite a produção do conhecimento, o diálogo com os diferentes públicos e a adoção de uma postura crítica e reflexiva diante dos objetos e das narrativas museais.
(*) Priscila da Costa Pinheiro Boscato é graduada e mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Especialista em Cultura e História dos Povos Indígenas pela mesma universidade. É professora da Secretaria Municipal de Educação de Juiz de Fora. Dedica-se ao processamento técnico do acervo bibliográfico e documental do Museu Mariano Procópio, bem como à preservação, pesquisa histórica e difusão cultural do acervo da instituição.