Lá do outro lado da linha, a pessoa se identificou como membro da força aérea de Israel. A mensagem foi curta: – Vamos bombardear, e vocês têm 15 minutos para abandonar o prédio. Essa prática é comum: telefonemas minutos antes de bombardeios em residências.
19-11-2024 às 09h:36
Ariel Seleme*
Ontem, o bombardeio foi mais intenso do que o normal. Bombas caíram em Mar Elias (numa biblioteca e centro cultural muçulmano) e em Badaro (no prédio de um suposto dirigente do Hezbollah).
Badaro, conhecida por sua vida boêmia, abriga o “Buteco”, único restaurante brasileiro de Beirute. O dono, Sam, é um marinheiro que navegou o mundo até ancorar no Líbano, onde decidiu nunca mais sair.
As explosões foram fortíssimas.
Mais triste ainda foi o que aconteceu em Clemenceau (foto), bairro vizinho à minha casa.
Chovia forte e já passava da meia-noite quando alguém, em um edifício residencial de Clemenceau, recebeu uma ligação.
Do outro lado da linha, a pessoa se identificou como membro da força aérea de Israel. A mensagem foi curta:
– Vamos bombardear, e vocês têm 15 minutos para abandonar o prédio.
Essa prática é comum: telefonemas minutos antes de bombardeios em residências.
A senhora que atendeu saiu pelos corredores, gritando em desespero:
– VÃO BOMBARDEAR! TEMOS QUE SAIR EM 15 MINUTOS! VÃO BOMBARDEAR!!!
O pânico tomou conta do prédio.
Pessoas se jogavam pelas escadas (depois da meia-noite, os elevadores ficam desligados para economizar energia).
Tropeços, quedas, braços e pernas quebrados. Todos abandonaram tudo, desesperados para salvar a vida.
O drama maior foi o de alguns idosos que se recusaram a sair.
– Prefiro morrer em casa, na minha cama. Já vivi isso por mais de 50 anos. Não quero mais. Vou morrer um dia, que seja hoje, aqui, em casa. Vou me abraçar ao retrato do seu pai e estou pronta.
– Mamãe, vamos! Venha comigo, mamãe! Eu imploro! Venha, mamãe!
Dizem que a mãe não saiu, e a filha permaneceu ao lado dela, abraçada, esperando a explosão.
Outros idosos, resignados, beberam garrafas inteiras de arak e se deitaram juntos, abraçados e esperando.
Isso tem acontecido com frequência: mesmo sabendo que serão bombardeadas, muitas pessoas não deixam suas casas – cansaço de tudo, cansaço da vida.
Os que fugiram, ainda de pijamas, enfrentaram a chuva fria e forte nas ruas escuras.
Crianças, idosos, pessoas com braços e pernas quebrados (carregadas nos ombros) vagavam sem destino, sem futuro, sem luz, esperando o sol nascer.
O bombardeio não aconteceu. Foi apenas uma brincadeira sádica de algum oficial do exército de Israel – guerra psicológica.
Da próxima vez, quando o bombardeio for real, ninguém sairá.
– Mas sair para quê? Para continuar com esta vida? – declarou um morador.
E o dia amanheceu lindo neste grão de arroz perdido no universo.
A luz trouxe vida à Beirute, que despertou e seguiu vivendo sua guerra normal, como tantas outras do passado.
*Ariel Seleme é Oficial de Chancelaria da Embaixada Brasileira em Beirute