
CRÉDITOS: Emmanuel Dunand
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31-03-2025 às 21h00
José Luiz Borges Horta*
Como todos nós cansamos de saber, na cultura ocidental o conceito de democracia tem no seu coração a ideia de Parlamento. Quando queremos reconhecer uma democracia, observamos se possui um parlamento, se esse parlamento é livre, aberto, soberano, representativo da vontade popular e efetivamente eleito pelo voto do povo que se vincula às decisões, mormente legislativas, ali construídas. Na ausência de um parlamento, ou mesmo na presença de um parlamento enfraquecido ou impedido de efetivamente constituir-se no coração vibrante de um Estado democrático, o mínimo que os scholars mais elegantes costumam mencionar é a existência de um “déficit” democrático.
Na Europa, berço da democracia, origem e calvário da Liberdade, raiz última das mais profundas tradições políticas — genuinamente políticas, uma vez que não há política que não seja democrática nem democracia que não seja política — a União Européia foi construída a partir de uma integração de natureza econômica, comercial, material. A dimensão política, assim como a dimensão social, somente se agregaram ao projeto magistral da União Européia com o passar das décadas e diante das vastas e reiteradas críticas ao déficit político-democrático do processo de integração.
Durante décadas, as instituições da UE pretenderam construir não um governo europeu, mas regras com padrões para serem seguidos até mesmo pelos governos europeus. Essas regras conceitualmente não são regras jurídicas, já que não decorrem de embates parlamentares, mas apenas e tão somente normas técnicas, estabelecidas segundo padrões não de decisões políticas de governo mas de meras formas de melhor fazer, reivindicando caráter desideologizado e despolitizado, no âmbito não mais do governo mas sim do que o neoliberalismo começou a chamar de “governança”.
A União Européia, assim, não edita leis como na sua tradição jurídica, apenas expede diretivas, decorrentes dos técnicos em governança européia de que sua própria estrutura se constitui. Do mesmo modo, ao arrepio do fato de que todos os países-membro da União Européia possuem alto desenvolvimento político e portanto sistemas parlamentares de governo, a União Européia não possui governo, e menos ainda parlamentar, uma vez que a Comissão Européia, que efetivamente conduz a EU, não só não é passível de votos ou moções parlamentares de censura, como possui poderes desproporcionais frente aos 720 (setecentos e vinte) eurodeputados, que acabam de ser eleitos pelos povos europeus.
É bem dizer que o sistema eleitoral para o Parlamento Europeu é dos mais avançados possíveis, permitindo ao eleitorado manifestar, e de modo muito transparente, suas posições e pensamentos. Nada obstante, as eleições europeias não são prioridade para os eleitores, que sabem que o Parlamento Europeu não possui poderes nem legislativos nem governamentais, funcionando apenas como um órgão simbólico dentro da estrutura da União Européia.
Há muito, as raposas políticas europeias descobriram nas eleições para o Parlamento Europeu as mais eficientes pesquisas de opinião pública possíveis e imagináveis, uma vez que os eleitores se sentem livres para votarem ideologicamente, sem que qualquer consequência de natureza efetiva possa lhes atingir. São eleições “sondocráticas”, para utilizar termo trabalhado por Henrique José da Silva Souza — sondocracia é a política não da vontade e da decisão popular, como a democracia, mas a das pesquisas e sondagens de opinião pública.
É assim, e somente assim, que faz sentido observar os resultados das eleições europeias e descobrir ou revelar desdobramentos potenciais do voto livre (mas não soberano) do eleitor europeu — restando a dúvida para os estudiosos se chega a existir uma cidadania européia ou se os cidadãos dos países ou Estados integrantes da União é que são convocados a prestar o tributo intelectual de seus votos ao orbe europeu.
Para interpretar estes resultados de 2024, talvez melhor seria recorrermos ao cinema mais crítico possível: nada é mais corrosivo e devastador que a ridicularização do mal, como tantos cineastas já nos mostraram, por exemplo, no caso do nazismo, que segue empesteando a política mundial. “Sou ou não sou” (To be or not to be, 1983, dirigido por Alan Johnson) e saborosamente estrelado pelo casal Mel Brooks e Anne Bancroft, ou “Bastardos Inglórios” (Inglourious Basterds, 2009, dirigido por Quentin Tarantino), estrelado por Brad Pitt e premiado com o Oscar para Christoph Waltz, são excelentes exemplos para mostrar o quão ridículos são os nazistas e, especialmente, o patético líder a que veneravam. De todos os filmes mais recentes e satíricos, o melhor e mais imersivo na personalidade totalmente nonsense de Hitler é o imperdível “Ele está de Volta” (Er ist wieder da, 2015, dirigido por David Wnendt) e protagonizado por Oliver Masucci.
Ele está de volta teletransporta Hitler de seu bunker diretamente para a Berlim de hoje, e o vemos enlouquecido pelas ruas tentando reassumir o Reich — e a melhor de todas as cenas é de caráter absolutamente profético e provocativo: o “pobre” Hitler, nos anos 2010, só reconhecia os Verdes como alternativa de voto, e nada mais o agradava minimamente.
O nazismo, sempre muito mal estudado, nunca se reduziu apenas ao antisemitismo, embora encontrasse no povo de Israel seu antônimo. O nazismo sempre foi, fundamentalmente, um movimento desumano e primal, baseado em duas idéias-força: a natureza é superior à cultura (sangue e solo valem infinitamente mais que valores e saberes) e os povos primevos devem higienizar seu espaço, depurando-o de seus colonizadores e invasores (pangermanismo, no caso daquela região, contra os invasores romanos que impuseram um deus judeu, uma cultura grega, uma língua latina e uma religião exótica).
O ódio visceral aos israelitas vem daí: judeus, na diáspora ou fora dela, têm tradição de acumulação de capital cultural (Bourdieu), já que, sempre perseguidos, precisavam de conhecimento para sobreviverem onde quer que aportassem. E eram (como são) intelectuais, cientistas, artistas, trabalhadores do intelecto — em fuga, só tenho a garantia de levar comigo o conhecimento que habita em mim, por isso essa é a prioridade atávica do povo judeu: desenvolver a inteligência e acumular saberes. Como um nazista, que abomina cultura e idolatra natureza, poderia suportar um povo que, por milhares e milhares de anos, educa os seus de modo a que todos provem saber ler aos treze anos de idade (no Bar Mitzvah)?
Em qualquer análise das recentes eleições europeias, se dirá que a Europa rumou para a direita. Tradicionalmente, o equilíbrio parlamentar e democrático se dá na alternância entre moderados de direita (ou centro-direita) e moderados de esquerda (ou centro-esquerda), que no jargão europeu são chamados, os primeiros, de populares ou democrata-cristãos (e hoje constituem o Partido Popular Europeu, o PPE) e os segundos de socialistas ou social-democratas (hoje em Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas, o S&D). Com 27 Estados e 720 integrantes, no entanto, dificilmente a lógica bipartidária funcionaria ad aeternum.
Os dois partidos de centro, responsáveis pela construção da União Europeia (é preciso registrar), foram sozinhos amplamente majoritários, enfrentando apenas grupos partidários minoritários, à direita, à esquerda, e mesmo no centro. Mas esses grupos cresceram, alguns deles muito, como é o caso do Renovar a Europa, liberal, imprescindível já desde as últimas eleições para garantir a maioria no Parlamento — maioria necessária para confirmar o Presidente da Comissão Europeia indicado pelo Conselho Europeu (órgão político, composto pelas autoridades políticas máximas de cada Estado-membro).
Na dinâmica do Parlamento, há ainda a Esquerda, miniaturizada com seus 36 eurodeputados, os Verdes (aos quais já voltaremos) e os vários partidos de direita. Na direita, as divisões são muito expressivas, havendo não só dois partidos fortes — o ECR e o ID — como um conjunto de dezenas de eurodeputados que sequer se filiam a estes partidos (como os que se aproximam da liderança do Premiê húngaro, Viktor Orbán, ou os eurodeputados da apavorante AfD, a Alternativa para a Alemanha).
Na mídia, é comum considerar os Conservadores e Reformistas Europeus (ECR) como direita e o Identidade e Democracia (ID) como extrema-direita, o que torna os avulsos de direita, talvez, como ultra-direita, como já se lê em um ou outro analista. Essas nuanças na direita são inconsistentes, uma vez que o exame dos partidos nacionais que integram os partidos no Parlamento Europeu, assim como de suas lideranças, torna as linhas de fronteira muito tênues, como aliás se sabe na política nacional. Demétrio Magnoli adverte que somente podem ser considerados “extremas” as forças anti-sistema, já hoje muito minoritárias, uma vez que tanto PPE quanto ECR e ID são direitas plenamente inseridas no jogo político e democrático europeu e todas estão integradas ao projeto europeu.
Nossa Rede Globo apressava-se já no domingo a proclamar as Européias de três vitoriosas: Ursula, Giorgia e Marine. Ursula von Der Leyen, atual Presidente da Comissão Europeia e candidata a se reeleger, é, na ausência terrível e imensamente sofrida de Angela Merkel, a maior liderança da CDU (União Democrata-Cristã) da Alemanha e por consequência do PPE, que conquistou, mais uma vez, a maior bancada no Parlamento (crescendo para 186 eurodeputados).
Giorgia Meloni, Premiê da Itália e lá eleita com uma campanha neofascista em que chegou a defender presidencialismo com eleições diretas para a Itália (uma loucura total para a Europa), é a figura central do ECR, quarta bancada no Parlamento (crescendo para 73 deputados e quase ultrapassando os liberais do Renovar a Europa que caíram a 79 cadeiras).
Marine Le Pen, eterno desespero dos gaullistas e dos socialistas franceses, é o centro nodal do ID, de onde defende firmemente os direitos sociais dos franceses, para desespero dos socialistas que os abandonaram (e o ID cresceu para 58 cadeiras). Reparemos que Meloni e Le Pen, se unidas, alcançam a segunda bancada do Parlamento, a do S&D, dos premiês da Alemanha e da Espanha (que caiu para 135 eurodeputados).
O Presidente francês, o sempre parlapativo Emanuel Macron, foi humilhado na França: Marine Le Pen fez o dobro dos votos que Macron e — muito pior! — os socialistas franceses empataram com os liberais. O empate de Macron com os socialistas é gravíssimo para seu projeto nacional, já que as eleições nacionais francesas não têm o mesmo sistema eleitoral europeu (proporcional em lista fechada), mas sim o precário distrital uninominal. Ao convocar eleições, ele busca apagar a vitória (muito relativa) de Marine, que não se reproduzirá na Assembleia Francesa, em razão do voto distrital que favorece ao centro, como favoreceu sempre.
Observemos: nas eleições presidenciais francesas, em 2012, Marine teve 18% dos votos, em 2017, 21% (e 34% no segundo turno), em 2022, 23% (e no segundo turno 41%) e agora, nas européias de 2024, seu partido faz 31% dos votos. Em paralelo, logo após cada uma daquelas eleições presidenciais, vieram eleições parlamentares usando o sistema distrital, e Marine fez, em 2012, dois deputados, em 2017, oito deputados (e ela foi eleita deputada à Assembleia Francesa pela primeira vez), e em 2022, 89 deputados — sempre em 577 cadeiras. Ou seja, mesmo com mais de um terço dos franceses a seu lado, Marine chega no máximo à metade disso em cadeiras no Parlamento, pelas distorções (ou contenções) que o voto distrital apresenta.
Macron está em risco: não (talvez) de cohabitar com Marine, mas com um premiê socialista. Marine tem cada vez mais chances de chegar à Presidência, por conta do voto direto, mas não ao governo; no Parlamentarismo esses excessos são raros. Ao dissolver a Assembleia Francesa, Macron visa simplesmente apagar das manchetes a vitória de Marine — vitória que não pode ser reproduzida em sistema eleitoral distrital —, a tempo das Olimpíadas de Paris, oxigenando a mídia, e talvez forçando na França a unidade quase inevitável no Parlamento Europeu entre seus liberais do Renovar a Europa e o centrismo moderado de populares do PPE e socialistas do S&D.
Na Espanha, o Primeiro-Ministro Pedro Sanches perdeu para seus adversários diretos, replicando o que se passou na Alemanha, onde a oposição nacional cresceu por onde pôde. O Chanceler alemão, e seu governo semáforo (vermelho dos socialistas, amarelo dos liberais e verde dos assim intitulados), derrotou-se e a todos os partidos governistas, viu crescer ainda mais a AfD (cantada em verso e prosa como nazista, que fez 15 eurodeputados enquanto os socialistas fizeram 14) e garantiu, com sua festejada fraqueza, a liderança da oposição nacional mais efetiva: a CDU de Merkel e Ursula.
E os Verdes que Ele está de Volta exaltava? Sob a liderança de Annalena Baerbock, a Ministra das Relações Exteriores da Alemanha, a “verde” que substituiu o gás dos Nordstream I e II pela queima de carvão, os Verdes foram devastados, perdendo 21 cadeiras e elegendo apenas 53 eurodeputados (só cresceram na Dinamarca e nos Países Baixos). O que terá havido? Menos consciência ambiental? Os europeus querem poluir o planeta? Qual a razão para essa expressiva queda?
Olhando o conjunto, parece muito mais simples do que fazem crer os comentaristas, que muitas vezes distribuem problemas para depois vender soluções. Eleitores com “pulsões” nazistas (portanto desumanos e primais, ou seja, adoradores da natureza e das simplicidades atávicas) que por décadas não encontravam onde votar e acabavam votando nos Verdes estão encontrando novas vertentes para verbalizar sua ausência de fé no ser humano e na cultura ocidental — no Estado de Direito e nos direitos fundamentais, para usar a mais forte das evocações.
Nada disso reduz a beleza das eleições. O Mercosul, opera prima de José Sarney, também tem seu Parlamento, o Parlasul, criado em 2006 e localizado em Montevidéu. Só o povo paraguaio, salvo engano, elege seus representantes. No Brasil, nossos mais de sessenta suldeputados, mais de um terço do Parlasul, são ainda “indicados” pelo Congresso Nacional. Para chegar a Europa, ainda temos de caminhar muito.
*José Luiz Borges Horta, 53, é Professor Titular de Teoria do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais e professor visitante sênior PrInt-CAPES na Facultat de Filosofia da Universitat de Barcelona. Ante-pré-candidato a deputado brasileiro junto ao Parlasul. Contato: zeluiz@ufmg.br