04-01-2025 às 08h48
Manoel Hygino dos Santos*
Em seu excelente “Dicionário Amoroso da América Latina”, Mario Vargas Llosa dá um abraço de admiração, solidariedade e amor a uma das mais belas partes do mundo. Entretanto não faz referência à Nicarágua, o maior país da América Central, que segue – no século XXI – as mesmas dificuldades depois da guerra civil da década de 1980.
Grande parte da população, formada principalmente por mestiços de índios e europeus, vive ao lado ocidental, voltado para o Pacífico, onde se localizam as maiores cidades. Uma cadeia montanhosa com vulcões ativos e dois grandes lagos separam essa região do lado oriental, voltado para o mar do Caribe. O clima tropical e as altitudes favorecem o cultivo do café, principal produto de exportação.
Historicamente, a região foi habitada por tribos procedentes da América do Sul até o século XX, quando começaram a chegar nativos do Norte. Cristovão Colombo apareceu em 1502, mas os espanhóis chegaram, sendo recebidos, em torno de 1520, por um chefe indígena chamado Nocarao, daí o nome do país.
Acontece que, desde o começo, houve atritos. Formaram-se dois povoados – León, que se tornou capital, núcleo urbano e intelectual, e Granada, em que passou a habitar e mandar a aristocracia latifundiária. Em 1826, a Nicarágua se torna membro das Províncias Unidas da América Central. Desfeita a federação, a capital passou a Manágua, situada entre as duas anteriores.
Os interesses e demandas não diminuíram. A briga pelo poder seguiu até que os Estados Unidos intervieram, em 1932, após o que se criou uma Guarda Nacional. Não terminou aí o banho de sangue. Em 1934, o guerrilheiro Augusto César Sandino é assassinado pelo comandante da Guarda Nacional, Anastácio Somoza. Dois anos após – ele ganha as eleições e governa ferrenhamente por vinte anos. Mas também é assassinado em 1956, substituído pelo filho Luís. O intelectual marxista, em 1961, funda uma guerrilha inspirada em Sandino: a Frente Sandinista de Libertação Nacional. Em 1967, Anastácio (Tachito) Somoza, irmão de Luís, assume a presidência.
Em 1972, um terremoto destrói Manágua. A ajuda é grande, mas é desviada para os cofres dos Somoza. Liberais, intelectuais e setores progressistas da classe média unem-se aos sandinistas contra a nova ditadura.
O assassinato do jornalista liberal Pedro Joaquim Chamorro é estopim de nova insurreição nacional contra o somozismo. Liderada pelos sandinistas em 1970, uma Junta assume o governo, expropria bens dos Somoza, nacionaliza bancos e estatiza 40% da economia. Os liberais Violeta Chamorro, viúva de Pedro, e Alfonso Robelo deixam, em 1980, a Junta e passam para a oposição. A mando dos sandinistas, Somoza é assassinado no Paraguai. Há nova revolução em 1984 com eleição do sandinista Daniel Ortega, mas não é reconhecida por Washington.
Em 1990, Violeta Chamorro é eleita pela União Nacional Opositora, vencendo a FSLN na eleição presidencial. Violeta é acusada de não investigar casos de corrupção. Terras passam de um proprietário para outro, inclusive na presidência de Arnoldo Alemán, que venceu Ortega em 1996. Há greves sucessivas. O furacão Mitch, em fim de 1998, deixa três mil mortos e 600 mil desabrigados. Eleições regionais e municipais se registram. Um acidente entre um barco pesqueiro hondurenho e uma patrulha nicaraguense, em maio de 1995, gera o conflito. O novo incidente entre as duas nações quase leva a um confronto armado, só arrefecendo com intervenção da ONU.
A sucessão de desencontros e de discórdia continua. O líder sandinista Daniel Ortega se elege e se alinha com Hugo Chávez, da Venezuela.
Assim é e está a Nicarágua, com seus pouco mais de 171 mil quilômetros quadrados e cerca de seis milhões de habitantes, governo duro, que prende e solta quando lhe convém.
Aylê-Salassié Filgueiras Quintão, pesquisador, jornalista, escritor, professor no Direito Federal, que conhece a América Central, observa: “Um dos países mais pobres da América Latina acaba de aprovar uma reforma constitucional, na qual o presidente Daniel Ortega (79 anos) , líder da Frente Sandinista de Libertação (FSLN), há mais de 30 anos na chefia do Estado, não apenas passa a ter o controle absoluto sobre os demais poderes, como torna “copresidente” sua mulher, Rosário Murillo, atual vice, e assegura a sucessão para o seu filho, Laureano. Serviço completo.
“No início daquelas coisas na Nicarágua, por volta de 1980, eu estava por lá – pela América Central, Nicarágua inclusive – e acompanhei a violência nas ruas de Manágua, até o assassinato, à queima-roupa: um tiro na cabeça, na frente de todo mundo, de um jovem fotógrafo norte-americano.
Os revolucionários não tinham nenhum constrangimento para abordar e agredir aos opositores. Era quase uma “justiça sumária”, promovida até pelo “guarda da esquina”, modelo inspirado na revolução cubana. O presidente derrubado Anastácio Somoza, fugido e exilado no Paraguai, foi morto em Assunção, também na rua, à queima-roupa, por uma bala de morteiro, que fez explodir a ele e ao carro que dirigia.
Essa sucessão de eventos odientos, acontecendo em cadeia, torna o cenário macabro e eleva a desconfiança pública nas autoridades e instituições. Tudo parece estar mesmo direcionado para a construção de um novo tipo de democracia, autocrática, relativa, amparada num partido único e protegida por milicianos. Já acompanhei, como jornalista, prisões de políticos e de militantes ideológicos, de líderes estudantis e trabalhadores, mas jamais vi uma conspiração tão forte a legitimidade do Estado Constitucional como agora, envolvendo personagens, inclusive estrangeiros sem quaisquer conexão e aderência com história e a vida do brasileiro.
Nada por aqui na política é menos atemorizante do que na Nicarágua. A autoconfiança é tamanha que se despreza, inclusive, a tal “maioria silenciosa” que guarda para si a indignação com ambiente de intimidação e revanchismo. Parece até tratar-se de vinganças pessoais: a Nação assiste estarrecida a montagem e o desmonte súbitos de narrativas, inclusive oficiais. A imprensa se deixa cooptar pela expectativa da novidade.
O curioso é que essas atividades não parecem seguir exatamente o pensamento de Lênin, Marx, Engels, Mao Tsé Tung, Ho Chi Ming, nem mesmo de Gramsci. Aproximam-se mais de Mussolini, Agatha Christie, Conan Doyle, J. K. Rowling, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Dan Brown. Transcende fácil de processos judiciais para páginas literárias ou policiais, estendendo-se o intricado jogo de enigmas, crimes e investigações que cativam leitores e eleitores desavisados. Os processos de averiguação são ardilosos, atraindo os leitores para os mistérios.
Nesse cenário, detetives, espiões, denuncistas, desempenham o papel central na busca pela verdade, mergulhando nas sombras da imaginação para trazer à luz aquilo que escondem nas entrelinhas, e afloram nas interpretações. Para facilitar a criatividade hermenêutica recomendaria os envolvidos a leitura de escritores policiais, brasileiros mesmo:
Andrea Nunes, “A Corte infiltrada”; Paula Febbe, livros sobre perversão e psicose, dilemas humanos; Cláudia Lemes: “Quando os Mortos Falam”; Thais Messora: “Um Ótimo Dia Para Morrer”; Patrícia Melo, “O Inferno”; Ilana Casoy, criminóloga e escritora, escreveu livros baseados em pesquisas sobre o perfil psicológico de criminosos; Vivianne Geber, a história do “Espião Rodolfo Rupel” e “O Enterro dos Ossos”.
Alguns estão em E-books. E, como disse: “Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita”.
Em que pese o cenário político macabro, desconhece-se o que leem – até para se divertir – os presidentes da Nicarágua e do Brasil. O brasileiro disse que nunca leu um livro. Não sabe o que está perdendo. Assusta, porque um ministro aventou a possibilidade de queimar livros, tipo “Fahrenheit 451” (Bradbury, 1956) Não se entusiasmem, pois. Na Revolução Francesa – modelo arquetípico – guilhotinaram-se tantos opositores que, sem mais cabeça para cortar, começaram a cortar a dos próprios companheiros.
E veio o Napoleão…”.
*Da Academia Mineira de Letras e da Associação Nacional dos Escritores.