Na década de 1990, muitos acreditavam se encontrar na alvorada de uma era gloriosa, de pleno emprego, estabilidade econômica, progresso tecnológico, paz no âmbito internacional
13-12-2024 às 09h41
Phillipe Oliveira*
A internet está obcecada por Luigi Mangione, principal (na verdade, o único) suspeito pelo assassinato do CEO da multinacional estadunidense UnitedHealth Group, Brian Thompson. O executivo – baleado em frente a um hotel em Nova York, no dia 4 de dezembro de 2024 – era um dos principais nomes ligados ao setor dos planos de saúde na América do Norte.
Os Estados Unidos – que, diferentemente do Brasil, não possuem um sistema de saúde público universal – enfrentam, há anos, problemas ligados às companhias de seguros: não são raras as reclamações e os protestos contra condutas abusivas das empresas, que aumentam arbitrariamente o valor de apólices e se recusam de forma sistemática a custear tratamentos de clientes. A UnitedHealth Group – cujo valor das ações caiu 10% desde o assassinato de Brian Thompson – já foi, ela própria, alvo de manifestações, protagonizadas por segurados que tiveram solicitações de tratamento negadas discricionariamente.
O presidente Barack Obama tentou, sem sucesso, remediar o problema, através da controversa Lei de Proteção ao Paciente e Assistência Médica Acessível – “Patient Protection and Affordable Care” (Affordable Care Act) –, popularmente conhecida como ObamaCare. O fato é que o cidadão estadunidense médio, no que diz respeito a acesso a saúde, sente-se com frequência refém dos interesses de grandes corporações predatórias – representadas por homens como Brian Thompson. Operadoras de saúde como a UnitedHealth Group são vistas, por muitos, como a representação mais crua dos vícios do sistema capitalista: a redução de indivíduos a números no balanço financeiro, a cínica indiferença face a dramas humanos reais, a obsessão pelo lucro…
O paciente que precisa passar por um procedimento cirúrgico, mas vê seu pleito negado pela seguradora – que se vale de artifícios burocráticos, como as “letras miúdas” do contrato – sofre, na pele, as mazelas de uma sociedade plutocrática e injusta, feita para preservar os ganhos de uns poucos oligarcas. Daí que o assassinato do CEO da UnitedHealth Group tenha ganho, em nosso imaginário, a aura de um “ato político”: em cartuchos de balas deixados na cena do crime as autoridades teriam encontrado as palavras “deny” (negar), “defend” (defender) e “depose” (destituir), associadas às estratégias das companhias de seguros para rejeitar pedidos de tratamento.
Nesse cenário, Luigi Mangione parece emprestar um “rosto” a um sentimento difuso de frustração e revolta que cresce ano após ano em nossa cultura – seria ele, guardadas as devidas proporções, o Gavrilo Princip de nosso tempo? Na década de 1990, muitos acreditavam se encontrar na alvorada de uma era gloriosa, de pleno emprego, estabilidade econômica, progresso tecnológico, paz no âmbito internacional, aceitação das diferenças, inclusão das “minorias…”. Mas a realidade acabou batendo à porta!
Hoje, a maioria de nós sente-se cada vez mais insegura, ansiosa e precarizada – diante da flexibilização de direitos trabalhistas, da deterioração da qualidade de serviços públicos básicos, da crise climática, do aumento da violência em grandes metrópoles etc. Longe de se mobilizarem para sanar tais problemas, as elites têm deixado a população à própria sorte, criando “bolhas” nas quais podem se refugiar da catástrofe política e ambiental em mundos “artificiais” (como os condomínios fechados da Barra da Tijuca). A desigualdade entre ricos e pobres atinge, em nosso tempo, graus paroxísticos – estamos prestes a assistir ao surgimento do primeiro trilionário da história, com um poder material que faria inveja a qualquer faraó do Antigo Egito. Por isso, não é de se surpreender que várias pessoas tenham recebido a notícia do crime de Luigi Mangione como um momento estranhamente “catártico”.
Luigi Mangione é um engenheiro de dados pertencente a uma abastada família ítalo-americana. É bissexual, jovem (tem apenas 26 anos), inteligente (formou-se em uma conceituada universidade norte-americana) e popular (parece muito ativo nas redes sociais). Esses fatores fizeram com que milhares de pessoas, na internet, empobrecidas e ludibriadas por oligopólios como a UnitedHealth Group, celebrassem Mangione como a expressão “sexy” do rancor e do ressentimento que sentem. Na última semana, plataformas como o Twitter e o Instagram se viram inundadas por memes fazendo remissão à morte de Brian Thompson – a maioria “sexualizando” Mangione, com referências a “visitas íntimas” ao rapaz na cadeia etc. “Mama, I’m in love with a criminal” (“Mamãe, estou apaixonada por um criminoso”): os versos da música de Britney Spears lançada em 2011 voltaram a circular intensamente, nos últimos dias.
Várias pessoas têm vasculhado o ciberespaço buscando informações capazes de explicar o ato de Mangione.
Ele teria feito uma delicada cirurgia nas costas há poucos meses, depois de um acidente no surf: será que enfrentou problemas com a operadora de seguros? Desejam ardentemente se solidarizar, se identificar com ele, justificar sua decisão – ver nele o representante de uma pauta maior, contra o abuso dos planos de saúde, as corporações, Wall Street, o neoliberalismo… Mangione redigiu um manifesto contra o sistema de cuidados médicos nos EUA, que foi publicado na íntegra. Muitos têm comparado a pequena carta – com ressalvas, obviamente! – ao livro ‘A sociedade industrial e seu futuro’, redigido por Ted Kaczynski (o terrorista mais conhecido como Unabomber, responsável por explosões sucessivas entre 1978 e 1995).
Há uma vasta bibliografia filosófica discutindo se seria legítimo o exercício da violência (incluindo o homicídio) na defesa de uma Causa “justa”. Desde a Revolução Francesa, muitos intelectuais têm debatido sobre a utilidade do crime como instrumento de transformação social. Seria muito temerário, nessas poucas linhas, nos aventurarmos nessas questões, que ocuparam pensadores tão distintos quanto Edmund Burke, Hannah Arendt, Frantz Fanon e Slavoj Zizek. Não cabe a mim – mas aos tribunais de justiça, e ao Tribunal da História – avaliar o sentido moral e jurídico do assassinato atribuído a Mangione.
Mas PRECISAMOS refletir sobre a postura dos “fãs” do jovem. A instantânea conversão de Mangione em um ídolo pop é um sintoma da decadência de nossa época, “ao mesmo tempo expressão da miséria real e protesto contra a miséria real”. Mostra o pouco valor – num mundo no qual a saúde foi privatizada – que damos à vida humana. Revela, ainda, o quanto estamos ofuscados pelo “culto à celebridade”, numa era em que, como profetizou Andy Warhol, todos lutam pelo “direito a 15 minutos de fama”. Aliás, é bem provável que Warhol, se vivo fosse, fizesse dípticos com a imagem do altamente fotogênico Mangione (à semelhança do ‘Díptico Marilyn’, serigrafia feita a partir de foto da musa Marilyn Monroe).
Há quem especule que Mangione, na verdade, teria se deixado aprisionar, dando “pistas” estrategicamente: sua captura seria o último ato de uma performance midiática feita para colocar em pauta, no debate público, o problema dos planos de saúde. Com efeito, todo ato “terrorista”, na contemporaneidade, funciona como uma encenação para a grande imprensa, é uma tentativa teatralizada de chamar a atenção dos jornais, da televisão e da internet. No caso de Mangione, o que torna o episódio singular é o fato de o protagonista da performance, por si mesmo, já se parecer com uma estrela da mídia.
Contudo, a conversão de Mangione em sex symbol espelha uma insatisfação bem real com os rumos que o capitalismo financeiro tomou. Se, nos anos 1990, ninguém tinha dúvidas de que as ações do Unabomber eram o resultado de esquizofrenia paranoide e alienação, hoje, não são raros os que veem em Mangione um “líder revolucionário”, um Che Guevara queer da Geração Z. O que mudou? É cada vez mais difícil, à medida que avançamos no século XXI, conservar a esperança no futuro. Quase todos acreditam que nos encontramos em um modo de organização da vida política e social que fatalmente levará ao colapso da humanidade; mas ninguém consegue sequer IMAGINAR projetos de mudança que evitem esse destino. Nesse cenário, espasmos cegos de violência niilista são percebidos como a única resposta possível ao pesadelo em que vivemos.
A questão que fica é: seremos capazes de converter o nosso ÓDIO – aos bilionários, aos conglomerados, à pobreza, a uma estrutura social que precariza as condições materiais de existência… – em um programa real de reforma política? Ou seguiremos fabricando memes e “comemorando” assassinatos? Ninguém pode, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan, ou as operadoras de planos de saúde. A conversão de nosso – legítimo! – sentimento de injustiça em performances midiáticas acaba, ao fim e ao cabo, nos tornando acomodados, e fazendo com que (para além de alguns tiroteios e comentários irônicos) aceitemos de forma passiva a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição de renda.
Continuaremos “trabalhando sem alegria para um mundo caduco”, e aplaudindo aqui e acolá aqueles dentre nós que eventualmente surtam e se rebelam, ou erigiremos um programa coletivo capaz de negar as dinâmicas de opressão, nos defender dos avanços do rentismo e do capital financeiro, e destituir o poder dos grandes magnatas?
*Professor de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)