A arte, melhor terapia psiquiátrica - créditos: Marcos Noronha
23-11-2025 às 11h00
Marcos de Noronha*
Recentemente, ao retornar do Japão, onde participei de um congresso internacional, não consegui embarcar em um dos trechos adquiridos com milhas de uma empresa aérea. Tratava-se do bilhete de uma companhia parceira, de um trecho de Barcelona a Florianópolis. Nem aplicativo e nem pela web, usando o localizador, consegui realizar o check-in, diferente dos outros bilhetes, comprados nas mesmas condições. No trecho anterior, de Osaka a Barcelona, fui surpreendido com a cobrança de cerca de R$ 2.700 para despachar a bagagem, pois a passagem comprada com milhas, com esta empresa, não a incluía.
Antecipando-me a novos imprevistos, tentei contatar a companhia responsável pelo voo Europa–Brasil, mas todas as tentativas, com o localizador mostrado no aplicativo, de fazer o check-in pelo site das parceiras falharam. Então recorri ao atendimento do app para os usuários que se mostrou complicado, moroso, burocrático e neste caso, foi totalmente ineficaz. Passei horas em vão no imenso aeroporto de Barcelona, sem solução. Voltei à cidade preocupado com a perda do voo e pelos compromissos da segunda-feira em meu consultório, e nem consegui dormir. Voltei logo de manhã para o aeroporto, conseguindo comprar outro bilhete com ajuda da família e em outra companhia aérea.
Ainda sem ter aprendido a lição — e sem ter lido as regras — adquiri com milhas uma passagem para minha filha que, em caso de cancelamento ou remarcação, ficaria mais cara do que adquirir um novo bilhete com taxas incluídas. A categoria elevada do programa de fidelidade, que prometia diversas vantagens, revelou-se parcialmente ilusória: o acesso às salas VIP foi prejudicado pelas filas enormes e pela morosidade que não conciliavam com a hora que teria que partir. Além disso, as salas lotadas se tornaram pouco atrativas.
Onde mora, então, minha verdadeira indignação? Ser membro de um clube de fidelidade poderia expressar apenas o desejo de conforto, mas eu esperava também maior consideração da companhia aérea, especialmente porque, já idoso, recebo sempre um atendimento diferenciado no embarque — uma espécie de “compensação” por ter me tornado velho.
Lembro-me de minhas dificuldades históricas com regras, desde a separação conjugal e as normas para visitar meu filho, que ficou com sob a guarda da mãe. Inspirado por essas mudanças, compus uma música que retrata a angústia da separação, a impotência diante de regras rígidas e o lamento de que a vida poderia ser mais simples.
NÃO SEI CHORAR, PAPAI
Data: Julho de 1989
Letra e música: Marcos de Noronha
Você disse:
“Eu não sei chorar, papai,
não sei chorar como você.”
Você disse não saber chorar
como chora a sua mãe.
Vim trazer as suas coisas
que ficaram lá em casa.
Veja como são as coisas:
a gente casa e descasa.
Quero entrar na sua onda
e aprender a surfar,
me agarrar no seu foguete
e mil planetas visitar.
Você disse ao telefone:
“Venha aqui pra me buscar.”
Fico mudo do outro lado,
já não sei o que falar.
Quero deitar ao seu lado
e muitas histórias contar,
encarar esse oceano
e contigo velejar.
Passear num ultraleve
sob a bela Conceição,
na montanha ver a neve
e guardar você no coração.

Após esses episódios, refleti sobre a diferença entre moral e ética. Nem sempre as normas defendidas pela moral — ligadas aos costumes de uma sociedade — respeitam a ética. Esta, a ética, é o campo da filosofia capaz de refletir criticamente sobre tais regras, o que deveria ser a “boa conduta” e quais delas tendem a ser universais. Pedindo licença, para inserir uma piada dos meus velhos tempos e que, pelas regras, tem conotações sexuais e é inapropriada, vou contrariar as orientações de não postar, feitas pela IA getmerlin e buscar contar com a compreensão dos leitores. Em reuniões com amigos eu contava tal piada, com ar professoral e atribuía ser uma máxima de uma personalidade religiosa brasileira; “Atrás é justo, mas não é certo. Na frente é certo, mas não é justo”.
A moral pode ter várias origens, numa determinada cultura: em suas tradições, ou por determinação religiosa. Nos direciona, como devemos fazer e como devemos agir. Mudar uma moral na sociedade, é um processo lento e mesmo sendo prescritiva, obedece a uma campanha capaz de modificar o pensamento e a postura dos membros desta sociedade. Foi lentamente, em Santa Catarina, a mudança de como pensavam os cidadãos em relação a “Farra do Boi. Hoje, este costume, se tornou raro e clandestino, comparado a década 80 quando cheguei para morar em Florianópolis, por exemplo.
Por outro lado, a ética, tem sua origem racional, reflexiva e fundamentada em argumentos. Por isto, uma postura ética sempre conta com bom senso e está mais próxima do justo, comparado com a moral ou a regra estabelecida. As intenções daqueles que buscam aplicar regras, podem ser boas, mas seus resultados dependem de um diálogo mais amplo, democrático, que muitas vezes, acabam ajustando as regras.
A ética nos indaga sobre o “por que devo fazer algo”, ao invés de determinar o que devemos fazer. Ela tem um caráter mais crítico e analítico, e parece ser mais objetiva, passível de entendimento. As anedotas sobre a moral, não param. “As regras foram criadas para serem quebradas”. O general Douglas MacArthur repetia uma máxima: “Rules are mostly made to be broken and are too often for the lazy to hide behind.” O general que lutou na Segunda Guerra Mundial no Pacífico, podia estar querendo dizer que tais normas foram criadas para serem cumpridas, mas não deveriam engessar nosso bom senso.
Comparando com a moral, a ética foi feita para ser questionada, debatida e é mais susceptível de evolução que a primeira. E por falar em ética, convido a todos para um debate no dia 26 de novembro, no Cinema do CIC, em Florianópolis, sobre como uma cidade deve lidar com seus desabrigados. O debate reúne minha equipe, representantes da Prefeitura Municipal e um padre filantropo local. A campanha da prefeitura, baseada em dados, tem mostrado resultados, mas gerado também polêmicas: para uns, é um verdadeiro ato de cuidado com tal população; para outros, restringe a liberdade deles, melhorando apenas a imagem da cidade. As estratégias para identificar caso a caso, optada pela Prefeitura, pode ser um diferencial capaz de atingir os bons resultados, somados com a redução da violência nos espaços urbanos. Estas estratégias parecem semelhantes aos das recentes ações na Cracolândia, no centro da cidade de São Paulo, que também polemizou.
Portanto, mesmo que as regras se refiram à ordem, promovendo previsibilidade e segurança, muitas vezes servem de esconderijo para delinquentes empoderados ou mantêm desigualdades na sociedade. Elas são capazes de ignorar contextos históricos e culturais por serem elaboradas por grupos no poder. Hoje, as mulheres podem votar, não existe escravidão de negros e, no Brasil, menores de 18 anos não podem ser presos. Mas será que a regra publicada pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei nº 8.069/90) se manterá assim por muito tempo? Quando uma instituição, seja qual for, insiste em aplicar normas sem reflexão ética suficiente, fragiliza sua imagem e pode gerar indignação, como ocorreu com a companhia aérea brasileira citada.
Os integrantes de um clube de fidelidade, diante de situações semelhantes às que vivi, poderiam se decepcionar, pois a empresa parece não cuidar de seus membros, evidenciando impessoalidade, falta de ética e diversos abusos. Regras injustas também geram subornos e corrupção, incentivando aqueles submetidos a elas a burlá-las, a darem “um jeitinho” como forma de resistência. Por outro lado, como já dizia Max Weber, a impessoalidade burocrática busca neutralidade e eficiência, mas gera uma “gaiola de ferro” onde servidores e cidadãos ficam presos a procedimentos excessivos. Comumente, na sociedade burocrática moderna, a confiança se compromete diante da frieza da impessoalidade.
A erosão da confiança mútua parece ser característica da sociedade atual, polarizada e combativa sempre que o outro adota um posicionamento divergente. Mesmo que nosso desejo de encontrar vantagens seja remoto, a frieza do mundo atual eleva esse desejo à condição de necessidade. Gestores de grandes empresas e cidades vêm buscando estratégias para que seus colaboradores sintam aproximação, atenção e consideração. Se provocarem esses sentimentos, tanto o gestor, quanto a instituição que representa, serão valorizados.
Ainda que o mundo moderno exija padronizações, o momento proporcionado pelas inteligências artificiais poderá suprir a frieza das regras da modernidade, oferecendo atenção mais personalizada. Se dispomos hoje desses recursos, por que poucos gestores os utilizam? Recorrer a um robô para amenizar a impessoalidade das relações parece contraditório. Porém, na prática, tais ferramentas já estão sendo usadas para personalizar e qualificar a comunicação, gerando descrições antecipadas que podem direcionar os descontentes a um gestor humano. O objetivo é buscar eficiência e atender à grande demanda de uma população heterogênea, que muitas vezes despeja seus conflitos sob justificativas alheias.
Que nossa ética nos acompanhe, permitindo-nos pensar e abandonar o posicionamento preguiçoso que adotamos em nome da moral. É bom reconhecermos as regras para uma ordem social, mas que nossa autonomia e responsabilidade individual não sejam alijadas. Que tais normas não nos proíbam de questionar até mesmo as tradições, preservando nossa liberdade responsável capaz de evoluir nossa civilidade. Afinal, não foi corrigindo excessos e estabelecendo espaços de autorregulação que avançamos civilizatoriamente? Moral e ética podem ser complementares, e divergências em nosso mundo podem ser estimulantes a um bom debate
*Marcos Noronha é médico psiquiatra titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Conselho Federal de Medicina

