07-12-2024 às 10h00
Por Dr. Handel Cecílio*
O cravo, conhecido por seu timbre brilhante e “charme” tanto como instrumento solista quanto continuísta, desempenhou um papel crucial na vida musical europeia desde o Renascimento até o Barroco. Este instrumento não apenas servia para música, mas também era um símbolo de sofisticação, frequentemente decorado elaboradamente para refletir a riqueza e o gosto de seu proprietário. Originando-se no final da Idade Média, o cravo evoluiu significativamente ao longo dos séculos. Os primeiros modelos, que eram relativamente básicos, deram lugar a instrumentos vibrantes e leves no século XVI, desenvolvidos por fabricantes italianos e caracterizados por rica ornamentação e construção robusta (figura 1b). Durante os séculos XVII e XVIII, a fabricação de cravos alcançou seu apogeu nas regiões flamengas, com famílias renomadas como os Ruckers transformando a fabricação do cravo em uma forma de arte elevada. A popularidade do cravo atingiu o pico no século XVIII, destacando-se nas obras de compositores como Johann Sebastian Bach e Domenico Scarlatti, antes de começar a declinar com a ascensão do fortepiano.
Quanto a seu funcionamento – O cravo é conhecido por seu timbre brilhante, produzido de maneira única por meio de um mecanismo que funciona da seguinte forma: ao pressionar uma tecla, o martinete (também conhecido como saltadores ou saltarelo) (figura 1a) se eleva, ativando o plectro (figura 1a – ④) que belisca a corda (figura 1a – ①). A corda é então silenciada pelo abafador (figura 1a – ⑤) ao ser liberada a tecla. Em contraste, no piano, os martelos percutem as cordas, produzindo som. Tradicionalmente, os plectros eram feitos de penas de pássaro ou couro, mas atualmente também se utilizam materiais plásticos. Os cravos geralmente possuem múltiplas cordas por tecla e podem apresentar dois ou mais conjuntos de cordas em diferentes alturas, permitindo uma rica sobreposição de sons. Modelos mais avançados podem incluir até quatro manuais e vários registros em diferentes oitavas (16’, 8’ e 4’), similar aos órgãos de tubos, enriquecendo assim a sonoridade e o timbre do instrumento. Contudo, o cravo não possui o mesmo alcance dinâmico que o piano. Alguns modelos de cravo incluem uma pedaleira (figura 1c), permitindo que sejam tocados com os pés, uma característica compartilhada com os órgãos de tubos. Além do grande cravo em forma de asa, existem modelos menores, como os virginais e as espinetas, que possuem apenas um teclado e uma corda por nota, com as cordas paralelas ao teclado. A espineta é triangular, enquanto o virginal é quadrado, cada um produzindo um som distintamente ressonante.
Neste link, é possível assistir a um vídeo sobre o instrumento e sua construção por William Takahashi: https://www.youtube.com/watch?v=xKnf2CtRw5A.
Durante o século XIX, o cravo tornou-se obsoleto. No entanto, no século XX, o instrumento vivenciou um renascimento significativo, impulsionado pelo movimento de performance histórica que buscava autenticidade na execução da música barroca. Durante esse período, instrumentos históricos foram recuperados e restaurados, e luthiers produziram réplicas fiéis. Atualmente, o cravo é celebrado não apenas por sua importância histórica, mas também por seu som único, que não pode ser replicado por instrumentos modernos. Seu legado continua a influenciar interpretações modernas de música antiga, fornecendo um elo direto com a paisagem auditiva dos períodos renascentista e barroco.
Na coordenação do projeto de restauração do cravo Sassmann da Escola de Música da UFMG está a Maestra Dra. Iara Fricke Matte, professora de regência na instituição desde 1997. Com uma sólida formação, é doutora pela Indiana University e mestre pela University of Minnesota. Iara Fricke foi regente titular do Ars Nova-Coral da UFMG de 2013 a 2017 e da Orquestra Sinfônica da UFMG de 2019 a 2022. Atualmente, Iara é regente titular e diretora artística do Concentus Musicum de Belo Horizonte, composto pelo Madrigal Concentus, pela Orquestra Barroca Concentus e pelo Coro Sinfônico Concentus, que colabora regularmente com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais desde 2016. Reconhecida como uma das mais atuantes regentes contemporâneas, destaca-se no campo da música antiga, especialmente a barroca, com performances historicamente informadas. Dedica-se também à estreia de obras contemporâneas e à interpretação dos clássicos da literatura coral e sinfônico-coral. Paralelamente às suas atividades de maestra e professora, Iara idealizou e coordenou diversos eventos culturais, incluindo a Série Fermata, o Festival Bach – 250 anos, a Semana de Música Antiga da UFMG, a Jornada Concertistas em Pauta e a Academia de Regência da UFMG, todos visando fortalecer e promover a música de concerto e seus protagonistas.
Na figura 2, da esquerda para a direita, destacamos: Macilene Gonçalves de Lima, Pró-reitora Adjunta de Planejamento e Desenvolvimento; Maurício Freire Garcia, Pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento; Carlos Aleixo, Vice-Diretor da Escola de Música; Renato Sampaio, Diretor da Escola de Música; Iara Fricke Matte, Professora de Regência e Coordenadora do Projeto; Edmundo Hora, cravista concertista deste evento; o cravista Felipe Silvestre;e o luthier Corentin Charlot.
Um cravo, um passado e um futuro – Neste sentido, a Prof.ª Dra. Iara Fricke afirma que restauração do cravo Sassmann faz parte de um amplo projeto por ela desenvolvido com a colaboração de colegas enquanto atuava como regente e coordenadora da Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFMG. Este projeto foi viabilizado através de um convênio com a Secretaria de Educação de Minas Gerais, destinado às universidades públicas mineiras, com o objetivo de adquirir e restaurar equipamentos. Na UFMG, o convênio visava assegurar recursos para a estruturação, ampliação e qualificação dos Laboratórios de Ensino de Graduação, estimulando e consolidando ações inovadoras que elevassem a qualidade do ensino nos cursos de graduação. Neste contexto, a Orquestra Sinfônica da EMUFMG, que serve como um extenso laboratório para alunos de instrumentos, regência, composição e canto, necessitava de equipamentos adequados para fomentar atividades de ensino, aprendizagem e avaliação de forma mais interativa e colaborativa. O projeto incluía a aquisição de novos instrumentos musicais, como fagote, violoncelo, contrabaixo, cravo, tímpanos e outros instrumentos orquestrais de percussão, além de mobiliário orquestral ergonômico, estantes de partituras e carrinhos para transporte de estantes. Também contemplava a reforma e manutenção de instrumentos como violoncelos, fagotes e o próprio cravo.O cravo Sassmann, frequentemente utilizado em concertos orquestrais de repertório barroco, foi incluído neste projeto, pois precisava urgentemente de uma extensa restauração para assegurar sua funcionalidade e prolongar sua vida útil.
História, Perspectivas e Desdobramentos – Segundo a Prof.ª Iara Fricke, o interesse pela música antiga na Escola de Música da UFMG teve início nos anos 70. Foi impulsionado pelo visionário cravista Felipe Silvestre, que trouxe da Europa um cravo Sassmann. Esse interesse se manifestou na pesquisa musicológica “Encontros de Pesquisa em Música” (1984), coordenada pela Dra. Sandra Loureiro; no curso de Especialização em Musicologia Histórica Brasileira; e no NAPq (Núcleo de Apoio à Pesquisa), ambas iniciativas do Dr. Carlos Kater entre 1989 e 2000. Refletiu-se também nas performances e gravações do Ars Nova-Coral da UFMG, sob a regência do maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca, e em várias outras apresentações artísticas da escola. Fruto deste percurso, a Semana de Música Antiga da UFMG, criada em 2007 pelo professor André Cavazotti, inaugurou uma nova era ao integrar diversas áreas do saber e mesclar teoria e prática. O evento, realizado em Belo Horizonte e cidades históricas mineiras, ocorreu em mais três edições, nas quais tive a honra de participar da coordenação, recebendo grande repercussão nos meios cultural, artístico e acadêmico, tanto brasileiro quanto internacional. O cravo Sassmann esteve presente em todas essas atividades. A restauração do cravo Sassmann e a encomenda de um cravo Blanchet do luthier William Takahashi (com entrega prevista para 2025) coincidem com o retorno da Semana de Música Antiga da UFMG. Essas ações visam fomentar a rica gama de atividades pedagógicas, artísticas e de pesquisa de nossa escola. Além disso, a presença destes cravos não só ampliará nossas atividades artísticas e acadêmicas, mas também aponta para a futura criação de disciplinas e, quiçá, de um curso voltado especificamente para a formação da nova geração de cravistas, um processo que espero se concretize em breve.
O construtor de cravos Martin Sassmann teve um importante e significativo no ressurgimento moderno do instrumento, particularmente na Alemanha durante a década de 1960. Ele começou sua carreira na fabricação de cravos depois de trabalhar para Neupert, abrindo sua própria oficina em 1955. Sassmann é conhecido por seu estilo inovador que, embora inicialmente baseado em métodos modernos de construção de pianos, gradualmente começou a incorporar mais elementos de designs históricos nos seus instrumentos. Os cravos produzidos por Sassmann são conhecidos por sua robustez e riqueza sonora, oferecendo uma variedade de timbres através de múltiplos registros. O modelo “Schütz”, por exemplo, é um dos seus cravos bem conhecidos e foi nomeado em homenagem ao compositor Heinrich Schütz, seguindo uma tendência popular de nomear instrumentos após compositores famosos. Este modelo apresenta uma disposição dupla manual, possibilitando uma execução mais versátil e dinâmica. A abordagem de Sassmann para a construção de cravos reflete uma fusão entre a qualidade artesanal tradicional e a funcionalidade moderna, o que tornou seus instrumentos particularmente populares entre os músicos da época. Seus cravos são celebrados por sua capacidade de produzir sons poderosos e brilhantes, ideais tanto para práticas solo quanto para acompanhamento em conjuntos. Assim como o órgão de tubos precisa respirar, pois tem foles, o cravo precisa vibrar, senão ambos os instrumentos morrem!
O restauro e a reinserção do cravo Sassmann – A restauração do instrumento foi confiada ao luthier Corentin Charlot após um processo licitatório. O trabalho de restauro, que durou aproximadamente seis meses, envolveu frequentes visitas de Charlot, que dedicou todos os esforços necessários para reviver o instrumento. Graças a esse meticuloso trabalho, a reinauguração pôde ser celebrada com sucesso. Como parte das celebrações do Centenário da Escola de Música da UFMG, o cravo Sassmann foi reinaugurado na última segunda-feira, dia 2 de dezembro de 2024, após quase quatro anos de inatividade. O cravista Prof. Dr. Edmundo Hora brindou-nos com um esplêndido recital de obras de Bach, revelando a ampla gama de emoções que este excepcional instrumento é capaz de expressar. Aqueles que estiveram presentes se sentiram profundamente tocados e encantados, tendo a oportunidade de se conectar mais intimamente com essa rica história musical.
O Recital de reinauguração cravo Sassmann foi realizado pelo Prof. Dr. Edmundo Hora, um entusiasta da arte dos séculos XVII e XVIII. Doutor em Cravo pela Unicamp e renomado especialista em Música Barroca e instrumentos antigos de teclado, Dr. Hora desenvolve seu trabalho fundamentado na interligação das técnicas específicas desses instrumentos. Atualmente, seu acervo inclui cravos, um órgão de câmara, clavicórdio e fortepianos – incluindo duas réplicas de 1796 e um original do século XIX. Com formação em órgão e cravo, foi organista titular da Catedral Basílica de Salvador de 1972 a 1977 e especializou-se em cravo em São Paulo de 1978 a 1980. Em Amsterdã, Holanda, de 1984 a 1993, graduou-se como “Solista de Cravo” pela Amsterdamse Hogeschool voor de Kunsten e completou pós-graduação na Hogeschool Stichting Amsterdam – Sweelinck Conservatorium, sob orientação de J. Ogg e A. Uittenbosch, tendo Gustav Leonhardt como presidente do júri em seu exame final. Mais recentemente, Edmundo Hora tem seu trabalho registrado nos CDs “Terceiro Sinal”, com música para orquestra barroca de Haendel e Edson Cordeiro (1996); “Triplo Contínuo”, com música de câmara barroca italiana para dois violoncelos e cravo (1998); “América Portuguesa”, com música colonial brasileira para coro e orquestra Armonico Tributo (1999); “Froberger – pour passer la Melancholie”, com obras de Johann Jakob Froberger para cravo solo (2000); e “ESTES NOSSOS BRASIS”, com música para fortepiano no Brasil dos séculos XVIII e XIX (2006). Como solista, atuou com várias orquestras, incluindo a Sinfônica de Minas Gerais, de Campinas, da Unicamp, Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro-Porto Alegre, OSUSP, OSESP e Orquestra Barroca “Armonico Tributo”. Professor do Instituto de Artes da Unicamp desde 1993, atua também no Programa de Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado em Cravo na mesma universidade desde 2004.
Quanto ao repertório do recital, o cravista Dr. Edmundo Hora se expressou da seguinte forma: a escolha de repertório para um recital é de grande importância, pois é dedicada ao público ouvinte, o verdadeiro destinatário de toda a preparação. A primeira consideração é sempre a variação sonora, alcançada por meio dos registros disponíveis no instrumento. A acústica do local, seja um teatro ou uma igreja, também é crucial, pois as reverberações individuais influenciam a escolha dos andamentos. Outro fator importante é a duração do evento. Nos dias atuais, em que a aceleração da vida diária é uma constante, apresentar um programa musical longo pode tornar cansativa a experiência de audição. Contudo, o objetivo principal é sempre persuadir ou convencer por meio do discurso musical. Portanto, sempre procuro estabelecer uma relação entre as tonalidades das peças, de modo que elas também contribuam subliminarmente para “mover os afetos”, um dos grandes trunfos expressivos do período barroco. Dessa forma, o repertório foi escolhido com a intenção de emocionar e convencer o público. Confesso que este é o meu ponto fraco, pois frequentemente me deixo levar pelas características afetivas das obras, o que torna o tocar de memória um desafio ainda maior! No entanto, vale sempre a pena correr esse risco, pois o auditor perceberá imediatamente o envolvimento do concertista e será levado pelos eventos expressivos. O “Prélude” inicial, que teve várias versões, refere-se em particular ao que o compositor Bach pensou como introdução para sua “Cantata BWV 29 – Wir danken dir Gott, wir danken dir” (Nós vos agradecemos, Senhor, nós vos agradecemos!), homenageando todos os envolvidos na restauração do próprio cravo que foi revitalizado em 2024. Com isso, passamos facilmente pela “Fantasia Cromática” e chegamos à última peça, a “Ciaccona” (original para violino), com todo seu esplendor e força dramática.
Ao refletirmos sobre o percurso histórico e a restauração do cravo Sassmann, percebemos a importância imensurável deste projeto não apenas para a Escola de Música da UFMG, mas para a cultura musical como um todo. Sob a liderança visionária da Prof.ª Iara Fricke Matte e com a participação de músicos excepcionais como o Prof. Dr. Edmundo Hora, a jornada deste instrumento ressoa como um símbolo de tradição, inovação e educação musical. Ao preservar e revitalizar o cravo, este projeto tece uma narrativa que entrelaça o passado com o futuro, celebrando a riqueza da música barroca enquanto inspira novas gerações de músicos e amantes da música. Este renascimento do cravo Sassmann é um lembrete poderoso de que a música, em sua essência, é uma força transformativa que continua a moldar, unir e elevar a experiência humana. Assista vídeo abaixo: