
Créditos: Divulgação
01-10-2025 às 10h03
Marcos de Noronha*
Os Emirados Árabes Unidos, tem aproximadamente o tamanho de Portugal e ficam na Península Arábica, onde o deserto ocupa a maior parte dos espaços. Ali perto fica o Catar, país sede da TV Al Jazeera, polêmica, por se anunciar independente e em defesa dos oprimidos, mas atuando, sem fronteiras, com algumas contradições. Durante o período em que pude acompanhar sua transmissão em inglês em Dubai, considerando que transmite também em árabe, vi notícias da Faixa de Gaza, em forma de campanha, afirmando sobre o genocídio de Israel sobre a região. “O Ataque israelense sobre Gaza sábado teria matado ao menos 96 palestinos, a maioria na cidade de Gaza”. Israel explica a destruição de prédios por estes serem usados pelo Hamas e os moradores, de suas casas destruídas, acreditam que o objetivo de Israel, é que a população deixe a cidade de Gaza, permanentemente.
As tensões na Península que estou visitando são alimentadas, desde longa data, pela rivalidade iraniana-saudita. Em toda esta região parece que as guerras são travadas por procuração. É dramática a situação no Iémen e na Síria, onde o Irã apoia os xiitas e a Arábia Saudita, apoia os sunitas. No Iémen foram destruídas de sua infraestrutura e bloqueios impedem a ajuda humanitária, além de que sofrem inúmeros conflitos de grupos rivais. Quando Israel revidou os ataques terroristas do Hamas em seu território, em um conflito sangrento que ainda perdura, intensificaram os conflitos na região, envolvendo também o Irã, alvo de ataques em suas instalações nucleares. Em junho, o então presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou um cessar-fogo completo entre Israel e Irã. Porém, sem armas, as mídias locais e mundiais tomam seus posicionamentos, incitando a sociedade rumo a seus interesses.
Alegações de que não existe um lado certo nos ambientes polarizados é um erro, mesmo que ambos os lados, neste drama, guardam suas razões. Eu estava num congresso mundial em Portugal, quando colegas mostraram-me notícias de que, Bolsonaro, o novo presidente, estava colocando a Amazônia em chamas, por descaso com a ecologia. Em forma de campanha, desde o início de seu governo, a esquerda e partidos aliados, tentaram denegrir a imagem de Bolsonaro, com imagens dos inúmeros incêndios. Para o estrangeiro as imagens dos incêndios não deixavam dúvidas sobre a inconsequência do presidente. Como sou frequentador da região, ponderei as conclusões deles na época. Os fatos são os piores inimigos das narrativas. Quando Lula tomou o poder no Brasil, na mesma região, incêndios ainda maiores aconteceram e ninguém denunciou no estrangeiro o fato, nem os grandes artistas fizeram suas canções para comoverem a população.
Em 2025, Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, denunciou os abusos do conluio governo/STF no Brasil, se mudando para os EUA. Inúmeras denúncias somaram-se sobre estes abusos e a visibilidade internacional cresceu com as aplicações de sanções do Governo Trump sobre poderosos envolvidos com a opressão, e descaso com os EUA. O Brasil recebeu também taxações econômicas, como foram aplicadas a muitos outros países, que, diferentemente do Brasil, conseguiram negociar. Diversos acontecimentos, como o desmascaramento de 8 de janeiro, como uma tentativa de golpe de Estado sob o comando do ex-presidente; as manobras do próprio STF, desde 2019, tentando oprimir manifestantes a favor da direita; o impedimento do Juiz Sérgio Moro, e o início das manobras para anular as condenações de Lula, a descoberta dos verdadeiros assassinos da ativista Marieli Franco. Todos estes fatos e muitos outros, seguidamente noticiados, principalmente, pelas mídias independentes e pela web, estão sendo confirmados, sistematicamente. A jornalista de direita, Bárbara Coelho, do Te Atualizei, também vítima daqueles momentos, fez uma retrospectiva no seu canal no YouTube (https://youtu.be/vswRVL46KMw?si=lofoIyYPq1rmiDAF).
Numa das reportagens de Léo Paszkowski, no programa em Outra Vida, que sigo no YouTube, assisti parte das entranhas do Líbano, um país que foi próspero e agora vive um drama. O país já foi uma referência econômica no Oriente Médio e hoje tem problemas de toda sorte. Beirute vive sem eletricidade, faltam combustível, faltam empregos e sobra repressão às tentativas de protestos pelo povo. Com a economia em colapso total, a população se divide na questão política, cujo governo só se organizou em 2022, após a devastação provocada pela guerra civil. Também é um país em discordância com Israel, devido ao fato de abrigar o grupo terrorista Hezbollah. A ascensão deste grupo ocorreu numa época em que combatentes palestinos deixavam o país, enquanto outro bando, treinados pelo Irã, gradativamente foi crescendo. Mesmo desorganizado e facilitado pelo cenário turbulento do Líbano, ficou conhecido pelos homens-bomba ligados a esta facção, em 1983, ao atacarem um quartel dos EUA em Beirute, matando cerca de 300 soldados americanos e franceses, além de alguns civis.
O Hezbollah faz parte de uma aliança maior, liderada pelo Irã, com grupos militantes próximos nesta região: no Iêmen, na Síria, no Iraque e em Gaza. Por isso, Israel considerou importante eliminar o comandante Fuad Shukr em ataques cirúrgicos em Beirute, em 2024. Terrorismo é a imposição do terror sistemático para fins políticos; atentados e destruição tiveram a indulgência do governo brasileiro atual. Quando Trump tentou classificar o crime organizado no Brasil como grupo terrorista, seus emissários deram explicações pouco convincentes de que não o eram. A marinha americana no Caribe intercepta diariamente o tráfico de drogas da Venezuela para os EUA, numa tentativa de enfraquecer o narcoestado venezuelano e destituir Maduro. A indulgência ao terrorismo ou ao crime organizado pode ser compreendida tanto por quem deles se beneficia diretamente quanto por idealistas que consideram essa a única forma de resistência aos impérios.
Para um brasileiro calejado com a mídia nacional, o polêmico posicionamento da Al Jazeera — acusada de incitar a polarização ao promover a Irmandade Muçulmana — não surpreende. Ao assistir ao filme iraniano A Semente do Fruto Sagrado, de Mohammad Rasoulof, também não me causou estranhamento ver o contraste entre a TV local e as imagens reais dos conflitos captadas pelos celulares dos protagonistas. O mundo polariza a sociedade por meio de repetições até que suas vítimas escolham um lado. Mesmo que nossos cérebros sejam capazes de atualizar seus arquivos com novas memórias, algumas, mais duradouras, podem resistir a essa atualização. As memórias emocionais do passado visam facilitar nossas vidas no futuro, mas crenças nucleares — de situações marcantes, possivelmente vindas da infância — podem oferecer resistências que explicam o posicionamento rígido de muitas pessoas num mundo polarizado.
Estar apenas diante dos fatos pode não ser suficiente para dissolver memórias cristalizadas. Tudo aquilo que contraria nossas convicções é recebido com dissabor. Para algumas pessoas, o impasse é vital, e conceber a possibilidade de reavaliar seu posicionamento é extremamente desconfortável. Na psicologia, essa postura assemelha-se à de uma pessoa traumatizada, para quem o discurso intelectual não basta. Muitos de nós, psicoterapeutas, recorremos a vivências para a dissolução de traumas, mas essas experiências discordantes podem gerar apenas variações — o paciente ou a vítima da polarização patológica traz novas justificativas ou recorre a subterfúgios.
O imenso deserto do Oriente Médio — e, sobretudo, o da Península Arábica, que percorri de pick-up 4×4 com outros turistas — remete à desertificação de recursos compensatórios dos indivíduos e de suas comunidades. Mesmo na cidade, a areia voadora encobre Dubai e seus 3 milhões de habitantes, formando uma névoa. Até o Burj Khalifa — com seus 828 metros e 160 andares — não escapa desse fenômeno. No verão, a areia se junta à condensação da umidade no ar e à poluição; a temperatura pode chegar a 48 °C e podem ocorrer tempestades de poeira, obrigando motoristas a redobrarem o cuidado ao transitar. Para “acalmar” o deserto, foram adotadas diversas medidas por meio de startups verdes e inovações: literalmente, estão plantando no deserto. Conheci o deserto de Lahbab, de areias vermelhas, e o de Al Awir, que permite certa agricultura, criação de camelos e abriga arbustos. Introduziram com sucesso o órix-da-Arábia na região, onde também se encontram a gazela-da-areia e a gazela-árabe — embora eu não tenha visto nenhum animal.
Dados sobre doenças mentais em Dubai são raros e ainda me deixam curioso. 80 % da região é deserto; 80 % da população é estrangeira, cuja maioria reclama do alto custo de vida. Em outubro, haverá a “Healthcare Future Summit”, visando discutir o bem-estar integral. Pelo que percebo, terão muito a debater, considerando que os imigrantes são cerca de cinco vezes mais propensos a desenvolver quadros psiquiátricos do que os autóctones. Deve-se ao fato de que tradições culturais oferecem recursos de comunicação e equilíbrio. O maior desafio da região — além dos problemas advindos do grande número de imigrantes em um espaço relativamente novo para o estabelecimento de tradições consistentes e integradoras — é o contraste entre a economia pujante e suas edificações extravagantes, que atraem turistas mas pouco contribuem para a saúde mental dos moradores. A cultura e sua relação com a saúde mental são o tema principal da conferência no Japão, para onde sigo nesta jornada.
