
Créditos: Divulgação
23-09-2025 às 08h41
Marcos de Noronha*
Na minha jornada para o Congresso no Japão, fiz uma parada nos Emirados Árabes como estratégia de descanso no meio do caminho. Dubai e a Emirates têm seus nomes relacionados ao luxo. Acontece que, para fazer um upgrade da minha passagem para a primeira classe, eu precisaria gastar mais R$ 9.000. Na primeira classe, os endinheirados usufruem do luxo das poltronas e do direito a um barzinho para se descontraírem ainda mais, em pleno voo.
A Emirates opera um dos maiores aviões de passageiros do mundo, o Airbus A380, e as poltronas apertadas da classe promocional são recompensadas pelo bom serviço e por pratos bem servidos nas refeições. Dubai parece ser sinônimo de fartura para quem pode. Os indianos, cujo país é próximo e hoje é o mais populoso do mundo, são numerosos também na região, mas reclamam de que o custo de vida é muito alto para eles.
Na longa viagem, nas poltronas apertadas, pude assistir a dois bons filmes dentre as inúmeras ofertas da companhia aérea em seu bom sistema de entretenimento. Um deles foi Dahomey, que parte do resgate de objetos simbólicos do Benin, sequestrados pelos franceses no século XIX. Incrível a ideia de fazer com que as estátuas, no processo de retorno às suas origens, se expressassem, falando por si. Melhor ainda foram as discussões em diversos espaços do Benin sobre a recuperação desses objetos pelo governo e, sobretudo, sobre o lugar da tradição na sociedade, que o filme retratou. O outro filme que assisti neste voo foi Conclave (2024). Foi mais um momento de reflexão para mim sobre as contribuições da Igreja e o papel das tradições. Mesmo que os discursos das personagens parecessem repetição de chavões, eu me pergunto: onde devem estar as verdadeiras contribuições da história e da tradição? Não deveriam estar voltadas para o futuro, para as gerações que irão surgir? Vejam que sempre poderá haver armadilhas nos apegos ideológicos exagerados, pois, com o passar do tempo, quantos de nós não nos separamos daqueles que se congelaram na sua ideologia? Enquanto outros, com o passar do tempo, continuaram apegados apenas ao que defendiam. A cristalização do apego ideológico ou da tradição, portanto, pode criar contradições ao propósito e é tema do meu próximo livro Polarização, no prelo.
Luxo e turismo estão relacionados a Dubai na atualidade, mas nem sempre foi assim. Cerca de 3.000 a.C., era uma vila de pescadores e comerciantes de pérolas à beira do Golfo Pérsico e rota de comércio marítimo, principalmente com a África e a Índia. O cultivo de pérolas no Japão, somado às dificuldades econômicas do passado, faliu esse comércio em Dubai. Porém, sua explosão econômica está relacionada à descoberta de petróleo e às atividades petrolíferas a partir de 1960. Nesses momentos de prosperidade, ocorreu a fundação dos Emirados Árabes Unidos, e Dubai constituiu-se um dos sete emirados fundadores. Em árabe, “emirado” (romaniz.: imarah; plural: imarat) significa “território administrado por um emir”. Antes, os principados da região eram conhecidos como Estado da Trégua, em referência a uma trégua do século XIX entre o Reino Unido e diversos xeques árabes.
Os Emirados Árabes Unidos fazem fronteira com Omã e com a Arábia Saudita e são formados por Abu Dhabi, Dubai, Xarja, Ajmã, Umm al-Quwain, Ras al-Khaimah e Fujeira. A capital, Abu Dhabi — onde ocorreu a primeira descoberta de petróleo — fica aqui perto e abriga a Mesquita Sheikh Zayed, uma das maiores do mundo, capaz de acolher cerca de 40 mil fiéis. Em Dubai, um riacho também fez a diferença. O Dubai Creek (que, em inglês, quer dizer “riacho”) é uma enseada natural de água salgada que penetra cerca de 14 km no deserto a partir do Golfo Pérsico. Separa o norte (Deira) do sul (Bur Dubai). Nele navegavam as chamadas dhows, embarcações pequenas e tradicionais. Este riacho facilitou o comércio na região e suas margens acolheram mercados (souks) de ouro e diversas especiarias. Trata-se do coração histórico deste emirado.
O luxo é perseguido pelo homem, diferentemente de sua cultura? Se discriminarmos o que impulsiona os pessoas em uma sociedade humana, podemos reconhecer a busca pela satisfação, tendo como alvo o prazer sexual, o luxo e o reconhecimento, por exemplo. Luxo refere-se à ostentação de riqueza e ao acesso a bens e serviços não essenciais, mas que proporcionam conforto e prazer. Por estar associado ao poder e ao status, pode despertar respeito ou ser rechaçado com duras críticas. Tem conexão com o prazer e com ofertas sexuais. O termo luxúria significa desejos excessivos por prazer, especialmente o sexual, mas também pode referir-se a outros prazeres, como dinheiro e poder. É considerado um dos sete pecados capitais. Será que cada emirado nesta região carrega um deles? O Cristianismo condena a luxúria nos Dez Mandamentos, e o Budismo a condena de forma diversa por meio dos Cinco Preceitos, oferecendo caminhos para a superação dessa tentação.
Quanto à sexualidade humana, ela difere dos outros primatas em muitos aspectos. Vale lembrar a obra de Jared Diamond, O Terceiro Chimpanzé, que ressalta a ovulação oculta das mulheres, em contraste com as fêmeas dos demais primatas, que percebem seus períodos férteis e emitem sinais aos machos, assim como muitos outros animais. Esses sinais são tão atraentes quanto adornos, vestimentas e perfumes femininos para os homens. No reino de outros primatas, monogâmicos ou promíscuos, o tempo de coito é exíguo quando comparado à atenção que os humanos dedicam às atividades sexuais, as quais não se restringem à procriação.
Na Arábia Saudita, as mulheres sofrem limitações para se exporem, comparadas ao que prevalece no mundo ocidental. Já em Dubai, elas procuram combinar o estilo da sociedade moderna com o respeito à tradição muçulmana. Embora os autóctones constituam uma minoria aqui (cerca de 19 %), vi muitas mulheres usando véus ou trajes que lembram Nossa Senhora.
O país é voltado ao turismo e me deixou perplexo com o tamanho do aeroporto de Dubai; mas não pensem que o WhatsApp funcione como estamos acostumados. Nem no pacote mundial da Claro, nem nos Wi-Fis dos hotéis, considerando as políticas públicas locais, você terá a liberdade de navegar. Experimente conectar-se a um site pornográfico, por exemplo, ou fazer uma chamada de voz pelo WhatsApp. Eu consegui enviar mensagens, inclusive de áudio, mas as ligações não se concretizaram com meu pessoal no Brasil. Recomendo mudar o VPN do dispositivo para obter a liberdade a que estamos acostumados — assim, funcionou comigo.
Impressionante que esta vila de pescadores tenha se transformado em uma das cidades mais atraentes do mundo. Projetos icônicos fazem parte dela, e outros estão por vir. O primeiro hotel “7 estrelas” do mundo é o Burj Al Arab (1999); Palm Jumeirah (2001–2006) é uma ilha artificial que ampliou áreas residenciais e turísticas na cidade; Burj Khalifa (2010) tornou-se o edifício mais alto do mundo (820 m); The Dubai Mall e as fontes de Dubai, entre muitas outras atrações, têm origem nos planos de longo prazo de Sheikh Rashid e Sheikh Mohammed bin Rashid Al Maktoum. Eles optaram por uma política de portas abertas aos investimentos em um local estrategicamente posicionado entre Europa, África e Ásia. Para isso, investiram em infraestrutura, estradas e aeroportos, além de promover diversos eventos atraentes. A população ultrapassa 3,5 milhões de habitantes, de mais de 200 nacionalidades, e o governo aposta na sustentabilidade de uma era pós-petróleo.
E o reconhecimento almejado pelos humanos, além dos impulsos em direção ao luxo e ao prazer sexual? Em toda família, comunidade ou grande contexto social, buscamos ser reconhecidos positivamente. Isso nos motiva, eleva nossa autoestima e pode superar nossas ambições por luxo e prazer sexual. Queremos ser bem avaliados nos diversos papéis que acumulamos, mesmo que, nesse quesito, possamos cair em armadilhas. Se cristalizarmos nosso desejo de notoriedade, teremos também dificuldades importantes de adaptação, recusando-nos a aceitar mudanças e considerações que podem se alterar com o tempo. Quem atinge notoriedade pode sentir-se muito mal ao perder o reconhecimento social que desfrutou, seja qual for a razão. Por outro lado, podemos ser reconhecidos por posses, bens de prestígio e pela popularidade alcançada. No íntimo, nosso maior prestígio é sermos reconhecidos pelo que somos.
*Marcos de Noronha é Psiquiatra Titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Conselho Federal de Medicina;
Psicoterapeuta e Psicodramatista reconhecido pela FEBRAP;
Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural;
Membro do Conselho da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural;
Seção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria;
Membro do Grupo Latino Americano de Estudos Transculturais (GLADET)
Com formação em diversas técnicas psicoterápicas dedicou, parte de seus estudos, às disciplinas que fazem fronteiras com a psiquiatria, dentre elas a sociologia e etnologia. Um dos fundadores da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural e da Mundial nesta modalidade. Escreveu artigos pioneiros sobre o tema nos principais periódicos científicos nacionais, e contribuiu com capítulos em alguns livros. De sua autoria exclusiva, publicou os livros Terapia Social, que expões de forma intimista sua trajetória e técnica, O Cérebro e as Emoções, fazendo uma leitura atual sobre o funcionamento do cérebro e o comportamento humano, recorrendo a uma analogia entre às práticas ritualísticas e os bastidores das psicoterapias e agora, Polarização – Sintoma de uma Doença Social que você pode participar com seu apoio. Marcos de Noronha coordena, em Florianópolis , grupos de Terapia Social, tanto no setor público, como privado e defende a técnica do trabalho em grupo como eficaz e mais abrangente, podendo ser uma boa opção a uma sociedade com grande demanda de distúrbios mentais e carente de opções de tratamento. Trata-se de uma técnica inclusiva, eficaz para o tratamento da doença mental e ambiente continente para o prazer e proteção dos participantes. Também exibe semanalmente seu programa Psiquiatria Sem Fronteiras e as lives, com sua equipe de Terapia Social, produzidos pelo Humanitas TV para o Youtube.
Eu atribuo o contato que tive com as obras de W. Reich a consolidação do meu interesse pela Psiquiatria Cultural. Sou filho de professores e sempre tive grande acesso a livros e enciclopédias em minha casa, me tornando apaixonado pela leitura. Eu já compunha músicas e poesias mesmo antes de alfabetizado e esse meu interesse em escrever continuou com a produção de inúmeros artigos que publiquei no Brasil e em outros países quando me tornei psiquiatra. Mesmo assim, só lancei um livro relatando os resultados de minha experiência profissional em 2007, “Terapia Social – Fatores socioculturais para o conhecimento e tratamento das doenças mentais. Estratégias para reintegração social do doente mental“.
Entrei na faculdade de medicina em 1977 e me deparei com as limitações do ensino médico, apesar da minha escola ser uma das melhores do Brasil (Universidade Estadual de Londrina). Então procurei complementar esta formação estudando: História e Filosofia Médica; Medicina Oriental e Homeopatia. Minhas atividades em psiquiatria iniciaram-se já no primeiro ano de medicina, em forma de estágio supervisionado na clínica Colina Verde, em Londrina, considerada moderna, com técnicas de psicoterapias de grupo na linha do psicodrama. À medida que fui me identificando com a psiquiatria, procurava complementar minha formação com disciplinas fronteiriças que se tornaram essenciais na minha prática atual. Curiosamente, os ensinamentos mais preciosos, que obtive, foram frutos dessa busca, e não, necessariamente, algo preconizado pela escola médica. Chegou um momento que a escola médica representava apenas uma obrigação e não mais uma fonte de prazer na busca de conhecimento. Ela parecia retrógrada e limitada na visão do mundo, do homem e das doenças.
Depois de ter terminado a Faculdade de Medicina, procurei aperfeiçoar as principais técnicas que havia me interessado e praticado parcialmente. Meu plano inicial foi conseguir uma bolsa para continuar meus estudos em Orgonomia de Wilhelm Reich, na Europa. Através deste autor despertei meu interesse pela Antropologia, iniciando pelas obras de Bronislaw Malinowski, antropólogo que realizou suas pesquisas também na Nova Guiné, mais precisamente nas ilhas Trobriand. Enquanto aguardava a concretização de minha inscrição na escola de Orgonomia na França, conheci por acaso, o Serviço de Etnopsiquiatria da Universidade de Nice, o que me fez mudar meus objetivos de pós-graduação. Tratava-se de um serviço que recebia muitos imigrantes e suas atividades baseava-se nos trabalhos do professor Henri Collomb, considerado o pai de Etnopsiquiatria clínica. Foi uma verdadeira imersão na experiência cultural e sua relação com o reconhecimento e tratamento da doença mental. Estudei a diversidade cultural no mundo e pude comparar com a vasta oferta das diferentes etnias no Brasil, e na diversidade da formação da sociedade brasileira e as e as diferenças regionais. Estudar como cada povo tem sua forma peculiar de adoecer e de procurar soluções para seus males, contribuiu para aumentar meu interesse pela Etnopsiquiatria e construir uma forma de trabalho considerando as experiências das sociedades tradicionais.
No Serviço de Etnopsiquiatria de Nice aprendi que era possível reconhecer diversos saberes no trabalho com o doente mental. Em Nice eu identifiquei traços de humanização da assistência, como havia encontrado em Londrina na minha formação, onde o usuário era respeitado e contava com um certo grau de liberdade em seu tratamento, de base essencialmente coletiva. Esse serviço oferecia algo que ultrapassava o que havia visto nos serviços de psiquiatria modernos, mesmo com seus “hospitais dias” e atividades extras hospitalares. Naquele ambiente, a necessidade de uso de psicotrópicos foi menor do que em outros serviços psiquiátricos, e não era um procedimento exclusivo. A comparação mais evidente nós fazíamos com outro serviço de psiquiatria, localizado ao lado, no mesmo centro hospitalar. Em nosso serviço, o paciente podia escolher, até mesmo, medicações homeopáticas ou participar de “passes” (com os magnetizadores), e outros procedimentos do arsenal de práticas tradicionais que eram oferecidas no hospital, em forma de pesquisa.
Henri Collomb, em 1959, já como titular da cadeira de Psiquiatria da Universidade de Nice, transferiu-se para o Senegal, onde permaneceu por cerca de 20 anos, dirigindo o Hospital de Fann, em Dakar, além de ser responsável pela saúde mental em todo o território daquele país. Collomb, diferenciando-se dos profissionais ocidentais, ao invés de impor suas idéias à comunidade colonizada, procurou conhecer os modelos tradicionais dos africanos e seus valores. Um de seus principais seguidores, que o acompanhou em sua jornada também no Senegal, foi o psiquiatra Michel Boussat, que também se dedicou à psiquiatria. Michel tentou disseminar a influência recebida de Collomb pela França e por todos os departamentos franceses por onde prestou serviços. A questão que ele levantava era: em que o conhecimento da etnopsiquiatria modificaria a atitude clínica do terapeuta? Eu tive a honra de contar com um prefácio especial de Boussat em meu livro.
Quando voltei da França, vim com o propósito, também, de difundir, primeiramente no Brasil, os estudos sobre Etnopsiquiatria. Usei como estratégia a apresentação de artigos nos periódicos científicos mais importantes, como a Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria e o Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Procurei, também, participar dos Congressos Brasileiros de Psiquiatria, difundindo esse tema e compartilhando minha experiência nos serviços, tanto da Etnopsiquiatria, em Nice, quanto da Psiquiatria Democrática, na Itália onde tive uma boa experiência. Meus estudos de revisão e alguns ensaios teóricos foram publicados e me permitiram conhecer muitos estudiosos que se interessavam pelo tema. Nos congressos nos encontrávamos, trocávamos experiências e planejávamos melhores espaços para discussão da Etnopsiquiatria. Eu havia me instalado em Florianópolis iniciando meu trabalho num consultório privado, onde desde 1985, desenvolvo as atividades que serviram de base para o desenvolvimento da Terapia Social, que hoje prático de forma ampla, também em comunidades e hospital público.
O primeiro artigo foi publicado na Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria – Associação Psiquiátrica da América Latina, com o título: Hospitalismo – Sintoma da Doença Institucional. Contribuições Etnopsiquiátricas, em 1986. No 11 Congresso Mundial de Psiquiatria Social, no Rio de Janeiro, também em 1986, saí em busca de mais interessados, mas não havia tanta gente assim. No nordeste do Brasil, havia estudiosos como Adalberto Barreto e Antonio Mourão praticando a Etnopsiquiatria e eu descobri que no passado, Rubim de Pinho e Nina Rodrigues foram os precursores de uma psiquiatria cultural no país.
Mas foi somente durante o 9 Congresso Mundial de Psiquiatria, realizado em junho de 1993, no Rio de Janeiro, que iniciamos o processo para a fundação de nossa associação. Eu tinha na “Psychiatria Sans Frontières”, associação francesa, um modelo a ser seguido. Porém, no Congresso Mundial, estabeleci meus primeiros contatos com a Seção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria, na época, comandada pelo psiquiatra Wen-Shing Tseng, do Havaí, que me apresentou ao austríaco Wolfgang Jilek, cotado para ser o futuro chairman da Secção. Estavam presentes também outros colegas, membros da Secção, dentre eles, os sul-americanos, Alberto Perales, do Peru, e Mario Hollweg, da Bolívia, que, mais tarde, se tornaram grandes amigos e incentivadores. Decidiu-se que a finalidade da nova associação seria a de “congregar profissionais de diversas disciplinas com interesses comuns em Etnologia, Psiquiatria e Sociologia e desenvolver estudos e pesquisas que possam trazer benefícios a terapia e a sociedade.” A sede e a coordenação provisória ficou em Florianópolis, onde iniciei a busca de recursos e ofereci as instalações do meu consultório para organizar e manter a Associação Brasileira de Etnopsiquiatria (ABE), que depois alterou o nome para Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural. Mais tarde, passei a editar um Informativo (Jornal da ABE), que, além de trazer as notícias nacionais sobre o tema, reproduzia as comunicações importantes da Secção de Psiquiatria Transcultural.
Tornei-me o primeiro presidente eleito no “I Congresso Brasileiro de Etnopsiquiatria” e Simpósio Internacional de Psiquiatria Cultural realizado em Outubro de 1998 em Florianópolis na Universidade Federal que recebeu cerca de 26 professores estrangeiros e vários nacionais.
Após um longo período de prática em psiquiatria, na medida em que fui desenvolvendo uma forma mais ampla de trabalho, me inspirando também nos modelos de tratamento das sociedades tradicionais, minha atenção se voltou às causas das doenças, ao invés de apenas visar a eliminação dos sintomas, como prevalecia na maioria dos tratamentos médicos. A proposta que eu desenvolvi estimulava o paciente a estar em “terapia”, em qualquer lugar em que se encontrasse, e não somente quando estava no consultório durante sua sessão. Surgiu-me a idéia de chamar Terapia 24 Horas. Pensei em: Terapia Ativa; Terapia Integrativa; Terapia Etnopsiquiátrica; Terapia de Contexto e etc. Mas todos os nomes em que eu pensava já haviam sido empregado antes, embora não houvesse, nessas terapias, os mesmos elementos técnicos que desenvolvi. Hesitei em chamá-la de “Terapia Cultural”, mas desisti, preferindo uma denominação que conotasse algo mais amplo, enfocando a reintegração do indivíduo com seu grupo, além de sua tradição. A tal técnica se inspirava, não somente no modelo das sociedades tradicionais que enfatizavam um enfoque e participação do coletivo, mas cujo desenvolvimento tecnológico não é o mesmo que o do mundo moderno. Eu usei também, como fonte de inspiração a simplicidade e coerência das atitudes humanas, procurando fazer do momento, um encontro o mais natural possível. Algo como resgatar o que a sociedade havia perdido no decorrer de sua história, para se tornar uma sociedade moderna, mas que ainda se conservava nas sociedades tradicionais, nas características do encontro de seus membros, no jeito de baterem papo, no seu estilo de acolher o outro, na forma de revelar e compartilhar o que sentiam e pensavam. A técnica não pretendia se limitar apenas em ser um lugar de escuta, como acontece em algumas sessões com psicanalistas ou filósofos clínicos, se bastando que tão somente essa escuta seja terapêutica por si. A escuta, somente, por mais acolhedora que possa ser, não parecia, para mim, solidária. Nem a passividade do silêncio, por sua vez, parecia um ato natural. Finalmente, então, eu decidi batizar essa proposta de Terapia Social.
Na Terapia Social a proposta de compartilhamento, das vivências dos participantes, à medida que o assunto em questão oferece essa oportunidade, é uma forma que proporciona menor resistência e maior interesse de todos, se compararmos com uma dinâmica onde somente o terapeuta contribui com sua oferta e de forma interpretativa e direta ao paciente. Estar em terapia, no consultório ou no dia-a-dia, seguindo uma proposta combinada, é estar constantemente disposto a reconhecer suas dificuldades, elaborá-las e ascender para um comportamento melhor. Neste processo, de reconhecer as dificuldades como algo dinâmico, o paciente tem a sensação de amparo e perspectiva de crescimento pessoal, proporcionado pelos momentos dolorosos. Em 2007, com o lançamento do livro “Terapia Social”, divulguei a proposta de reconhecer e utilizar recursos socioculturais no tratamento das doenças mentais. A mesma obra foi lançada em espanhol em 2012. Fui, mais de uma vez, membro do Conselho da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural e autor das obras “O Cérebro e as Emoções” e agora, “Polarização – Sintoma de Doença Social”.