
21-09-2025 às 09h07
Marcos de Noronha*
Dia 27 de setembro, às 15h50, no Room 1, serei o terceiro a me apresentar em uma mesa composta por japoneses, chineses e um italiano. Goffredo Bartocci, esse italiano, é renomado psiquiatra, um dos fundadores da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural e esteve no Brasil, em 1998, quando presidi a primeira Conferência de Psiquiatria Cultural na América Latina, na Universidade Federal de Florianópolis. Bartocci será apresentador e moderador da mesa. Considero-o amigo, mas houve um incidente passado pelo qual ele jamais se desculpou. Após minha conferência no XXI Congresso Peruano de Psiquiatria e II Congresso do Grupo Latino-Americano de Estudos Transculturais, quando eu me preparava para deixar o palco, ele subiu, tomou o microfone e criticou duramente minha contribuição, alegando falta de cientificidade. Deixou todos atônitos e coube a um psiquiatra francês, que daria sequência ao evento, defender meu trabalho: ele ressaltou a relevância da minha investigação sobre curandeiros, especialmente ao mostrar o ritual da Pachamama — reproduzido em festival urbano para lembrar essa tradição tão importante na região.
Mesmo que a infeliz reação de Bartocci possa ser atribuída à dificuldade de compreender minha exposição originalmente em espanhol, fica claro que erudição e notoriedade não garantem sensibilidade à diversidade do fenômeno espiritual. Anteriormente, em Nórcia (Itália), durante a segunda Conferência Mundial de Psiquiatria Cultural presidida por Bartocci, minha palestra sobre curandeiros provocou tumulto em razão do tempo exíguo a mim concedido. Naquela noite, participantes se reuniram novamente para que eu exibisse vídeos e conduzisse debates sobre cirurgias espíritas realizadas por curandeiros brasileiros. Poderia a reação de meu colega estar associada à sua formação católica e à dificuldade de aceitar práticas com outra cosmovisão? Pretendo instigá-lo, enfim, a esclarecer o ocorrido em Cuzco.
Falar sobre espiritualidade na psiquiatria cultural é clássico — retomamos o tema constantemente. A mesa foi intitulada “Antropologia, Filosofia, Espiritualidade e Psiquiatria” e, para minha contribuição, partirei de pesquisa recente em que participei. Nesse estudo, coletamos o DNA de médiuns e curandeiros para compará-lo ao de seus parentes mais próximos, buscando marcadores genéticos que distinguissem esses “sacerdotes curadores” de indivíduos sem tais dotes. Além disso, a fé — ainda que subjetiva — tende a se intensificar com a fama e a precisão das práticas dos curandeiros, assim como ocorre com médicos reconhecidos.
Portanto, a crença reforça a interação curandeiro–paciente, médico–paciente e psicólogo–paciente, além de potencializar os efeitos simbólicos de procedimentos e medicações. Muitos curandeiros detêm o dom da mediunidade, de dimensão universal e transcendental. Ao buscar marcadores genéticos correlacionados, o estudo do exoma — menor parte do genoma, mas responsável por 85 % das proteínas essenciais à vida — trouxe uma nova perspectiva: 33 genes candidatos encontrados em cerca de um terço dos médiuns e ausentes em seus não-médiuns (parentes de primeiro grau com mesmas condições socioculturais e socioeconômicas).
A Psiquiatria Cultural analisa a doença mental levando em conta fatores socioculturais e comportamentais. Modalidades terapêuticas que reconheçam esses aspectos tendem a superar aquelas focadas apenas no psicológico ou no biológico. Sabe-se da importância da fé para a eficácia dos processos de cura conduzidos por curandeiros ou médicos. Na conferência, compararei elementos agregadores de cerimônias ancestrais — caminhadas devocionais, rituais de nascimento, morte e iniciação — com práticas prevalentes nas sociedades modernas. As Terapias Sociais, técnica que aplicamos em Florianópolis, valorizam sistematicamente o contexto cultural e incluem componentes que estimulam integração e crença.
Laços sociais são fundamentais tanto para recuperar quadros psiquiátricos como para proteger contra eles. Profissionais de saúde mental devem conhecer e recorrer a recursos que integrem o paciente ao seu grupo social. Por outro lado, pessoas submetidas a confinamento — em prisões, hospitais de custódia ou psiquiátricos — frequentemente perdem ou têm fragilizados seus vínculos. Indivíduos que sofreram grandes perdas ou migrantes recém-chegados a um lugar também precisam recriar laços sociais. Os ambientes religiosos oferecem espaços de integração motivados pela espiritualidade: a crença em uma entidade transcendente e o pertencimento a um grupo religioso dão conforto ao ser humano.
*Marcos de Noronha é Psiquiatra Titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Conselho Federal de Medicina
– Psicoterapeuta e Psicodramatista reconhecido pela Federação Brasileira de Psicodrama
- Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural
- Membro da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural
- Associado da Seção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria
- Membro do Grupo Latino Americano de Estudos Transculturais (GLADET)
Com formação em diversas técnicas psicoterapêuticas, dedicou-se ao estudo de disciplinas que fazem fronteira com a psiquiatria, como sociologia e etnologia. É um dos fundadores da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural e da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural, tendo publicado artigos pioneiros nos principais periódicos científicos nacionais e livros sobre o tema.
Entre suas obras, destacam-se:
- Terapia Social – um relato intimista de sua trajetória e técnica;
- O Cérebro e as Emoções – uma abordagem contemporânea sobre o tema, com analogias entre práticas ritualísticas e os bastidores das psicoterapias;
- Polarização – Sintoma de uma Doença Social (no prelo).
Atua em Florianópolis coordenando grupos de Terapia Social tanto no setor público quanto no privado, defendendo o trabalho em grupo como uma alternativa eficaz para uma sociedade com grande demanda de cuidados em saúde mental. Também é apresentador do programa Psiquiatria Sem Fronteiras e de lives produzidas pelo Humanitas TV no YouTube.
Formação e Trajetória Profissional
Ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Londrina em 1977, onde percebeu as limitações do ensino médico tradicional. Para complementar sua formação, dedicou-se ao estudo de História e Filosofia Médica, Medicina Oriental e Homeopatia. Seu primeiro contato prático com a psiquiatria ocorreu já no primeiro ano de graduação, em estágios supervisionados em um hospital com técnicas modernas de psicoterapia de grupo na linha do psicodrama.
Aprofundou seus estudos em psiquiatria cultural após a graduação, inicialmente buscando uma bolsa para estudar Orgonomia com Wilhelm Reich na Europa. No entanto, sua trajetória mudou ao conhecer o Serviço de Etnopsiquiatria da Universidade de Nice, na França, onde se especializou na abordagem desenvolvida por Henri Collomb, um dos pioneiros da etnopsiquiatria clínica.
Durante sua estadia na França, trabalhou com imigrantes e aprendeu a integrar diferentes saberes no tratamento de transtornos mentais, priorizando abordagens humanizadas e reduzindo a dependência de psicotrópicos. Essa experiência consolidou sua visão sobre a importância da diversidade cultural no tratamento psiquiátrico.
Ao retornar ao Brasil, empenhou-se na difusão da etnopsiquiatria, publicando artigos em revistas como a Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria e o Jornal Brasileiro de Psiquiatria. Também apresentou trabalhos em congressos nacionais e internacionais, conectando-se com outros pesquisadores interessados no tema.
Em 1993, durante o 9º Congresso Mundial de Psiquiatria, no Rio de Janeiro, fundou a Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural. Em 1998, foi eleito o primeiro presidente da entidade no I Congresso Brasileiro de Etnopsiquiatria e Simpósio Internacional de Psiquiatria Cultural, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina.
Desenvolvimento da Terapia Social
Com base em suas experiências e inspiração nas sociedades tradicionais, desenvolveu a Terapia Social, uma abordagem que enfatiza a reintegração do indivíduo ao grupo e à sua tradição cultural. Diferente de abordagens convencionais, a Terapia Social propõe um envolvimento ativo e constante do paciente em seu processo terapêutico, tanto dentro quanto fora do consultório.
Em 2007, lançou o livro Terapia Social, formalizando sua metodologia. A obra foi posteriormente traduzida para o espanhol e publicada em 2012.
Atualmente, além de suas atividades clínicas e acadêmicas, é membro do Conselho da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural e segue promovendo pesquisas e eventos sobre psiquiatria cultural e terapias integrativas.