
CRÉDITOS: Divulgação
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13-03-2025 às 09h47
Caio Brandão*
Conheci Lady Francisco na redação do jornal O Diário, no final da década de 60, quando atuava como repórter. Lady redigia coluna semanal, de amenidades cotidianas, intitulada Bric-à-Brac, expressão que dizia respeito à comercialização de pequenos objetos de arte, dentre outras derivações afins.
Francisco, que fez sucesso principalmente no cinema e na televisão, comparecia com regularidade ao jornal, para entregar a coluna que assinava. Vê-la descer do seu “Fusquinha” branco, jogando, sem reservas, em direção ao solo, suas pernas de contornos inesquecíveis, era um espetáculo.
Nascida em Belo Horizonte, apesar do nome pomposo, Lady Chuquer Bella Borelli Francisco de Bourbon, morreu aos 84 anos, não faz muito tempo, no Rio de Janeiro, vítima de queda no interior de seu apartamento. Devo a ela a amizade que estreitei com Vinícius Pinto de Carvalho, advogado, jornalista e escritor. Vinícius e Lady Francisco se tornaram próximos por ocasião da exibição, na antiga TV Itacolomi, em Belo Horizonte, da novela “A Garrafa do Diabo”, nascida da imaginação criadora de Vinícius e tornada realidade pelo traço de sua caneta de inteligência incomum.
A presença de Vinícius era sempre auspiciosa. Vestia, usualmente, ternos escuros e com listras brancas, verticais, que combinavam com a sua palidez e estatura acima da média. Vinícius tanto podia ser confundido com um diplomata, quanto com um desembargador, mas se caracterizava por ele mesmo, com presença de dignidade. Educado, culto e dotado de perspicácia peculiar no trato com pessoas, Vinicius tinha desenvolvido alguns dons que aos seus amigos encantava, por serem rigorosamente insólitos.
Ele era grande hipnotizador, e tinha enorme capacidade de autossugestão (grafia atual). Por mais de uma vez assisti, em mesa de bar, Vinícius introduzir no próprio braço cerca de quinze centímetros de agulha de tricô, sem a presença de sangue e sequer a ocorrência de dor. Ele era capaz de escutar, e repetir em seguida, e na mesma ordem, mais de uma centena de palavras, demonstrando memória excepcional, que ele desenvolveu em face de técnicas de “pregos de memória”, que depois me repassou em detalhes e sob reserva.
A chegada da Primavera estava próxima, quando entrei no elevador do Hospital São Lucas. Vinícius estava internado há dias, abatido pelo agravamento de aplasia da medula óssea, doença que fragiliza a produção, pelo organismo, de hemácias, plaquetas e de leucócitos. Ele estava mal, debilitado, o que era visível, apesar dos esforços do seu hematologista, doutor Orion Bastos, um dos mais renomados à época. Vinicius se encontrava sentado na cama, enquanto Maria, sua esposa, se esforçava para ampará-lo com uma mão, e com a outra, segurar o “marreco”, ou, compadre”, para que ele pudesse urinar.
Imediatamente me prontifiquei a ajudar, segurando o marreco com a mão direita, e apoiando o meu corpo, na cama, com a esquerda. Vinícius era apenas um espectro do homem que conheci. Muito magro, quase sem voz e de palidez sepulcral. Urinando com dificuldade, não logrou fazê-lo no interior do marreco, mas o fez na minha mão. A urina, densa, morna e de cheiro desagradável, escorreu pelos meus dedos e se alojou empoçada na palma da minha mão, que se encontrava no formato de concha, com o indicador e o polegar em forma de pinça, para depois escorrer pelo meu pulso e pingar, estendida e intermitente, sobre o sapato marrom, que calçava o meu pé direito. Ele me fitava nos olhos e não notou. Não movi um músculo, porque não podia permitir que ele percebesse a situação: Vinícius se amofinaria.
Finda a micção, Maria, que flagrou o ocorrido, fechou lentamente os olhos em agradecimento e penhor. Me afastei devagar e fui ao banheiro. Vendo no espelho, a minha imagem, viajei rumo à irrelevância das coisas que nos cercam, porque tudo passa, e chorei, convulsivamente, não por ele, apenas, mas por todos nós.
Era domingo, quando cheguei, como de costume, à casa de meu pai, Paulo, na rua Caldas, onde passei a minha infância e cuja porta estava sempre aberta. Ele, viúvo, contava mais de 80 anos, tinha as suas distrações, modestas, e a saúde se comportava sem sobressaltos. Na cadeira de balanço estava o Paulo, como gostava de estar pelas manhãs. No chão páginas do jornal Estado de Minas, espalhadas com desmazelo e, na mesinha de canto, próxima à cadeira, repousava um copo alto, de cristal, cheio de uísque até a borda. Achei estranho. Paulo gostava de um bom uísque, mas eram dez horas, o que contrastava com as suas demandas etílicas, que nos finais de semana aconteciam rotineiras por volta do meio dia.
Ele estava visivelmente acabrunhado, tinha olhos tristes e não me dirigiu o olhar. Percebi, de pronto, algo errado, ruim, e perguntei-lhe, com cautela, se ele estava bem. Respondeu baixinho, que sim, mas com voz embargada e sofrida, quando acrescentou:
“Li, no jornal, o aviso fúnebre do último dos meus amigos. Agora eu não conheço mais ninguém”.
A nossa relação nunca contemplou abraços ou contatos físicos eloquentes, mas não me contive. Me posicionei ao lado da cadeira e me debrucei sobre ele, encostando o meu rosto na sua têmpora direita e choramos juntos, quando ele me entregou um pedaço de papel, com anotação.
Na folha pautada e de próprio punho, Paulo, poeta, que se notabilizava pela qualidade de suas trovas, dedicou ao amigo que se foi uma de suas mais notáveis criações:
Mais bebo, mais me angustio,
tamanha é a dor que me invade.
Sou planta de beira-rio,
numa enchente de saudade.
(Paulo Emílio Pinto)
*Caio Brandão é jornalista