
Revolução francesa. Créditos: Divulgação
09-10-2025 às 10h00
Rogério Reis Devisate*
A Revolução Francesa mudou o mundo. Por muito tempo, Paris foi exemplo de vanguarda do pensamento e o mundo ocidental a copiava. Desta vez, por mais investimentos no serviço público, grita a França: – Vamos bloquear tudo!
Acaba de cair o novo Primeiro-Ministro francês. Lecornu renunciou, sem completar sequer um mês no cargo. Tem havido dias com intensos protestos em Paris contra o governo e os anunciados cortes no orçamento, crise que já levou 500.000 pessoas às ruas. Consta que estão convocados 240 atos de protesto e manifestações, por oito organizações de trabalhadores e houve três greves no período de um mês, algo intenso demais e que pode abalar o regime.
Líderes sindicais defendem mais investimentos nos serviços públicos. Também há oposição à reforma da previdência, que alterou a aposentadoria para os 64 anos de idade. Enquanto isso, algumas sinalizações do governo pretendem quebrar a força do movimento, mediante promessas de medidas que possam melhorar o poder de compra das famílias e reduzir impostos (para casais com ganhos de 1 salário mínimo francês e sobre as horas extras trabalhadas). Medidas mais desgastantes estariam, também, sendo abandonadas, como a eliminação de dois dias do calendário de feriados, algo que poderíamos interpretar como o bode na sala, algo colocado para “causar”, desviando o foco dos outros assuntos.
É interessante notar o pleito sindical por mais investimentos nos serviços públicos. A questão é que os que mais necessitam dos serviços e atividades públicas não são as classes mais elevadas e sim os mais vulneráveis. Os servidores públicos e os serviços públicos são demandados pela grande população, aquela massa de pessoas que não tem dinheiro para realizar certas despesas, sem prejuízo do próprio sustento. Não podem realizar gastos particulares com médicos e hospitais, educação, advogados e custas judiciais ou habitação. Precisam de tudo isso em oferta pública, assim como precisam de comida, trabalho e fomento na oferta de emprego.
Cortes orçamentários não são fáceis de se fazer, decerto, mas não podem fazer sangrar a carne da população que mais necessita dos serviços públicos, do mesmo modo que não pode crucificar os servidores públicos pelo comprometimento do orçamento com outros gastos estatais ou o desperdício de dinheiro em ralos orçamentários, elevados gastos militares e histórico endividamento público.
Afinal, para que existe o Estado? Para que existe o governo? Existem o Estado e o Governo para ordenar a vida social, por um regime de leis e oferta de segurança pública. Portanto, a sua finalidade é cuidar do povo, elemento subjetivo do Estado e razão de ser da sua existência. Ao contrário do que alguns possam pensar, descuidar dos servidores públicos e dos serviços públicos não corresponde a beneficiar a população e sim a se ter descaso. Um risco à governabilidade, também, a longo prazo, por poder ocasionar a insatisfação popular e, assim, gerar conflitos e instabilidade social. A comparação é exagerada, decerto, mas o descuido com a população pobre acendeu o pavio que levou à Revolução Francesa. Sob esse prisma, a oferta de bons serviços públicos é causa de contenção da insatisfação popular e mecanismo de dignidade e cidadania.
Investir em serviços públicos e dar-lhe qualidade não tem outro significado senão cuidar bem da população – perceberam os sindicatos de trabalhadores franceses.
Enquanto isso, aqui se fala, de novo e mais uma vez, em reforma administrativa, como se isso pudesse solucionar décadas de problemas. Reflitamos, como já dissemos em artigo publicado em 13.09.2020, intitulado “Reforma da Reforma, da Reforma da Reforma: ”Se uma casa com 2 quartos não atende bem a 10 moradores, os atenderá melhor se a reduzirmos para 1 quarto?”
Estamos falando de sistemas públicos de prestação de serviço à população e que é capaz de atender a mais de 200 milhões de brasileiros. Os atendimentos emergenciais, prestados aos acidentados nas estradas não é feito pelo plano de saúde, mas pelo serviço de emergência, em regra a cargo dos bombeiros. Os acidentados, normalmente são primeiro levados aos hospitais públicos. Quando as barragens vazaram o seu conteúdo, em Brumadinho e em Mariana, foram os bombeiros, servidores da saúde e outros que prestaram o atendimento de excelência, em regime estafante e arriscando as próprias vidas, sem pagamento de horas extras, etc.
Na Pandemia, a rede pública do SUS suportou o atendimento e foi elogiada. O acesso à justiça pela Defensoria é imenso e em todas as áreas do Direito, possibilitando que o Judiciário atue pelos mais carentes e evitando que a massa da população faça justiça com as próprias mãos.
Se o serviço público for desestimulado ou for privatizável, daqui há pouco também podem se fazer campanhas para se privatizar os próprios poderes do Estado, seja o Legislativo, o Judiciário ou até o Executivo! Aliás, há crescente “poder paralelo” do crime organizado, que tem mostrado a sua força e a fraqueza das ferramentas estatais de contenção. Ademais, não se deve confundir as carreiras de Estado com as funções temporárias e comissionadas, que estão distribuídas em todos os níveis federativos e a cargo de pessoas que não prestaram concurso público – sendo os comissionados livremente nomeados pelos mandatários do poder.
Por fim, se o pensamento for apenas “econômico”, corremos o risco de haver quem diga que é melhor não se “gastar” dinheiro com o tratamento do doente X ou Y, por ter reduzidas chances de cura ou sobrevida. Se a conta for apenas “econômica”, poder-se-ia negar a alguém o direito de recorrer ao Judiciário porque haveriam reduzidas chances de ganhar algum benefício, indenização ou absolvição, em processo judicial.
É crível que os custos são menos relevantes do que valores como saúde e liberdade, bem estar e a luta por um direito… O direito à vida, à saúde, à liberdade, à segurança, ao acesso à justiça e à justiça, à moradia, à garantia da propriedade e à igualdade são valores fundamentais e invioláveis, mais do que apenas importantes. Quando assegurados, fazem muito bem à alma e à vida social. Não é assim em países tidos por desenvolvidos?
Que os nossos sindicatos e movimentos afins percebam pelo que lutam os franceses e nos protejam dos cortes e reformas iminentes, que possam ferir os investimentos nos serviços prestados ao público, a continuidade do serviço público e a base que nos garante atividades públicas estruturadas, por servidores de carreira, concursados e bem remunerados e de qualidade, sob pena de sofrermos todos, no futuro … e de gastarmos muito mais com pagamentos oriundos dos nossos bolsos e do orçamento público, à entidades privadas que possam ser convocadas para atuar em seus lugares e tentar cobrir vácuo criado.
(*)Rogério Reis Devisate é membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania. Colunista do Diário de Minas