Tadeu Martins, grande expoente da cultura e dos movimentos populares do Vale do Jequitinhonha - créditos: Tadeu Martins
01-10-2025 às 09h00
Tadeu Martins*
Em 1995 começamos uma verdadeira cruzada contra a mineração predatória no rio Jequitinhonha. As imensas dragas matavam o rio, e o mercúrio contaminava o povo das cidades ribeirinhas. Durante muitos anos, filhos do Vale denunciavam a triste situação, mas a imprensa não nos ouvia.

Escrevi esse livreto de cordel, um desabafo e protesto que foi amplamente distribuído para autoridades federais, estaduais, todos os prefeitos e muitos vereadores da região, além de jornalistas brasileiros e alguns moradores das cidades ribeirinhas do nosso Vale.

A repercussão foi muito maior do que imaginávamos. A luta do nosso povo continuou, houve uma grande mobilização contra as dragas, e bravos valejequitinhonhenses fecharam por um pequeno tempo a ponte sobre o rio Jequitinhonha, em Itaobim.
O Brasil ouviu o grito do Jequitinhonha.
JEQUITINHONHA NÃO É BRASIL
A imprensa brasileira nada fala dos problemas sérios do Brasil, enquanto isto, matérias como a guerra da Cherchênia: o beliscão que o Ieltsin deu na bunda da secretária: a calcinha de Hillary Clinton que apareceu quando ela foi se levantar de uma cadeira: o corte do bráulio do Mr. Bobbit; o beijoqueiro, o unabomber e o chute dado na estátua de Nossa Senhora Aparecida, ocupam páginas e mais páginas dos principais jornais e revistas do Brasil.

Por tudo isto, este desabafo “Jequitinhonha não é Brasil”. Que a população do Jequitinhonha possa pegar em armas, se preciso for, para fechar as dragas assassinas.
ACORDA JEQUITINHONHA!
Vale do Jequitinhonha, verão de 1995.
São cinquenta e seis cidades
perdidas no sertão mineiro
o povo é muito pobre
mas também é brasileiro
merece ser respeitado
retirado do cativeiro
São prisioneiros da fome
torturados pela ganância
implorando por justiça
encontram a intolerância
que o Governo Federal
promova uma sindicância
A voz que brota do peito
jamais comete perjúrio
que os ouvidos da nação
escutem o nosso murmúrio
as águas do Jequitinhonha
não aguentam tanto mercúrio
Grandes dragas assassinas
invadiram o leito do rio
trazendo tristeza e morte
vomitando seu poderio
matam o Jequitinhonha
que já se transforma num fio
Elas removem o leito
jogando mercúrio e terra
o pobre Jequitinhonha
já é cabrito que não berra
carrega consigo a morte
está perdendo esta guerra
Quem ganha, senhor presidente,
com o martírio da região?
O lucro que as dragas geram
não chega aos cofres da Nação
vai pras raias do contrabando
sonegado na Declaração
Tirando os noves-fora
vamos fazer esta conta
o lucro do país é pouco
a perda é uma afronta
o xis desta matemática
é o que mais nos amedronta
Os poucos beneficiados
se contam nos dedos da mão
os garimpeiros não são muitos
e merecem nossa compaixão
ganham um salário de fome
vivem de sonho e ilusão
O prejuízo não é pequeno
pois atinge a muita gente
é homem, mulher e criança
e até animal inocente
a fúria do malefício
é diuturna e crescente
A água contaminada
enfraquece o organismo
pedras na vesícula e rins
diarreia e reumatismo
câncer, estômago e pele
o tempo cava o abismo
Sem leito e com água suja
adeus peixe e ufanismo
morre esperança do povo
mata mais que o nazismo
acaba praia e beleza
toda a renda do turismo
Já passa de vinte anos
esta guerra na região
de um lado meia dúzia
do outro mais de um milhão
é o martírio de um povo
sendo escondido da Nação
Venham as forças de paz da ONU
intervir no Jequitinhonha
aqui é Bósnia e Cherchênia
isto aqui tá uma vergonha
precisamos da Intervenção
o nosso governo é pamonha
Que venham Bill Clinton e Fidel
venham sem armas e adagas
abraçar o povo do Vale
nos livrar de muitas chagas
sem o bloqueio a Cuba
Clinton bloqueia as dragas
Que venha o Boris Ieltsin
e assessores raquíticos
tomar a cachaça do Vale
os efeitos não são críticos
beliscar a bunda das moças
e a dos nossos políticos
Que venha Hillary Clinton
com respeito minha senhora
sentar perto de uma draga
mostrar a calcinha de fora
o povo vai abrir os olhos
mandar os picaretas embora
Que venha o casal Bobbit
com facas e afiadores
pra decepar muitos bráulios
dos nossos legisladores
que rifam a vida do povo
pelo bem dos exploradores
Que venha o beijoqueiro
beijar a draga assassina
que venha o Unabomber
traga a nitroglicerina
talvez o Brasil acorde
e enxergue esta chacina
Que venha o bispo Von Helder
proferir o seu impropério
chutar a draga e o santo
ver se dá um revertério
o santo protetor do Vale
hoje é o São Mitério
Que venha Adib Jatene
pra nos livrar desta confusão
e venha fazer um transplante
que talvez seja a solução
botar miocárdio nas dragas
pois seus donos não têm coração.
conhecer um povo que sonha
serão todos bem recebidos
com queijo, cachaça, pamonha
venham acordar a imprensa
pra respeitar o Jequitinhonha.
Meus sinceros agradecimentos a Silvia Trindade, pela ilustração da capa da primeira edição (1995), ao artista Erivaldo, pela xilogravura (capa atual), e ao Mestre Gaio, por eu ser o Homenageado 2023, no V Encontro Mineiro de Cordel. A xilogravura foi um presente que recebi no Encontro.
*Tadeu Martins é poeta, escritor, apresentador e presidente da ALVA – Academia de Letras do Vale do Jequitinhonha

