
Em 2022 me mudei para Belo Horizonte para cursar o mestrado na Faculdade de Direito da UFMG. CRÉDITOS: Freepik
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07-04-2025 às 08h45
Dante Alexandre Ribeiro das Chagas*
“— É preciso começar!
— Começar o quê?
— A única coisa no mundo que vale a pena começar:
O fim do mundo, ora essa!”
Aimé Césaire.
Neste texto queria pedir o direito de ser um pouco tautológico, quiçá hipócrita. Quero lamuriar as lamúrias e lamentar os lamentos.
Em 2022 me mudei para Belo Horizonte para cursar o mestrado na Faculdade de Direito da UFMG. Lido com a juventude enquanto vivo a minha própria desde a graduação quando comecei a dar aula e mesmo agora enquanto estagiário docente. Mas tem algo na universidade que tem me espantado um pouco: há um sentimento de derrota generalizado entre boa parte dos jovens. Sobretudo aqueles, como eu, vindos das camadas mais marginalizadas e periféricas da sociedade.
Há uma percepção de que a universidade não foi um espaço construído para “nós”. O que me assusta é que essa constatação chega em forma de crítica, mas não como orientação para transformação, somente um lamurio conformado, de modo a ficar a crítica pela crítica mesmo. Nada mais.
De fato, precisamos historicizar tudo, mas finalmente estamos em um momento em que a inclusão chegou e a universidade começa a ter um pouco mais a cara do Brasil no corpo discente e docente. Obviamente, essa inclusão se deu pela via da precarização. Não acompanhou políticas de assistência estudantil que fomentassem e mantivessem o alunado dedicado a seus estudos e pesquisas.
Governos de direita estão mais interessados em atender o capitalismo financeiro, injetando recursos públicos em privadas, enquanto criam uma geração de endividados. Mas é preciso salientar que estamos aqui! Chegamos aqui! A crítica deve estar orientada à esperança, à reforma, à construção, à produção de um amanhã efetivamente inclusivo nas universidades públicas, à tomada de lugares outrora negados. Afinal, não se espera da juventude uma certa rebeldia? Mas é uma rebeldia por condições melhores. Não uma pirraça sem movimento. A pirraça do confrontar sem querer ouvir, do enfrentar sem querer debater.
Saber que estamos num espaço em disputa faz com que determinados grupos cheguem prontos para uma leitura equivocada de um nós vs. eles. Nós, alunos, vs. eles professores. E fica por isso aí mesmo. Não uma tentativa de diálogo que caminhe para uma compreensão do que é o corpo universitário e como ele deve — ou deveria se organizar — mas simplesmente um combate perdido em que se constata que “as coisas foram assim, são assim e vão continuar sendo assim”. Realmente, eles devem ter vencido e fechado o sinal para os jovens que agora se apresentam tão conformados.
Obviamente há razões por trás desse sentimento. Estamos falando de um país onde a história da cidadania, como salientou o geógrafo Milton Santos, é e segue sendo precária: de um império escravocrata a uma república voltada à exclusão, com golpes aqui e acolá, a experiência democrática e cidadã é curta e frágil e o sonho de uma cidadania plena parece distante. Por outro lado, vozes historicamente silenciadas têm ganhado voz: estão aí negros, lgbts, mulheres finalmente falando e reclamando sobre as sofridas injustiças: “Ou seja, o lixo vai falar e numa boa”, diria Lélia Gonzales.
Depois de tanto tempo de amordaçamento, é normal que esses movimentos sejam, para dizer o mínimo, disfuncionais… (sabemos que vez ou outra um gigante acorda, mas não consegue fazer as coisas muito bem sem uma orientação). No entanto, o que seria uma esquerda tradicional está mais interessada, não em servir de vanguarda capaz de orientar essas vozes para uma agenda coletiva, mas em uma postura tola de achar que esses movimentos estão aí e vão aceitar não terem suas pautas reconhecidas. Querem falar de construção nacional, enquanto importam debates de twitter (ou x?) e gritam aos quatro cantos: é o identitarismo! É a agenda woke! Trata-se de um cenário tragicômico: uma juventude birrenta e uma vanguarda que se faz de cega e surda. A primeira ignora o futuro e a última não reconhece o presente. A cisão pela cisão.
Nesse contexto de falta de experiência cidadã, acredito que o discurso de um finismo histórico, isto é, a ideia de que alcançamos o fim da história e de que não há alternativas para além de uma democracia trancafiada sob o regime neoliberal, chega ao Brasil de modo muito mais preocupante. Gritaram aos quatro cantos, após a Queda do Muro de Berlim, que alcançamos o fim da história e a resposta da juventude parece ser um triste e lamentoso “assim seja”.
Ao observar a democracia podemos entender que o próprio avançar da liberdade torna as sociedades cada vez mais plurais. Daí um problema: grupos cada vez mais diversos suscitam representatividade política de uma forma que o ritmo da política não conseguiu acompanhar, sobretudo quando o Estado, e, por conseguinte, a própria democracia são sequestrados e acorrentados em torno de uma visão única, ou de um único caminho possível.
O ser humano é dotado de uma carência antropológica, ele é movido, também, por suas insatisfações, ele quer mais, e quer poder mais. Essa carência que é latente do ser humano, agora convencida de que não há para onde ir, de que não se tem mais o que construir, busca não mais um engajamento construtivo e político, mas um conforto e uma acolhida moral daqueles iguais a mim. Ironicamente, o individualismo suscita uma micro-comunidade, pequenas fragmentações nas quais eu busco um grupo daqueles que sofrem iguais a mim diante desse comedouro vivo que é a sociedade civil. Buscamos refúgio com base em nosso sexo, em nossa fisionomia, em nosso credo etc. Os movimentos sociais e as igrejas aparecem aqui como um ponto de acolhida, mas incapazes de dar o passo seguinte de reconexão com o todo. Se os movimentos sociais servem de crítica ao que está dado, seja as mazelas do racismo e do sexismo, ou algo do tipo, conformam-se com a fragmentação que aí está, com a cisão que aí se coloca. Oferece conforto, mas não alternativa. Não uma agenda coletiva de transformação. Sente-se a necessidade de dar voz e escuta aos meus iguais e protegê-los daqueles diferentes. Em lugar da política, do diálogo e do confronto, abrem-se grandes salas de consulta e terapia.
Até onde me consta a tomada de uma consciência social, seja ela qual for, sempre foi um momento a ser superado. Isto é, compreender o lugar e o momento no qual estamos situados numa realidade díspare é um momento importante para a transformação. Daí o tão mal compreendido conceito de lugar de fala e vivência que serviriam de elementos qualitativos e não excludentes de um discurso. Poderíamos aqui retomar o filósofo martinicano Frantz Fanon, que dizia que o negro estava alienado em sua negrura e o branco em sua brancura, de modo que o reconhecimento de uma dada negritude seria um momento de reconhecimento da realidade — mas que exigiria não uma conformidade com esse status, mas uma busca por um humanismo radical, com lugar efetivo para a alteridade, para um humanismo na medida do mundo em vez de na medida limitada da Europa. Essa imagem serve para pensar a forma como os movimentos sociais tem se limitado hoje. Mais do que constatar cisões é preciso perseguir reconciliações.
Peço a licença do leitor. Sou apenas um jovem negro e bisneto de Euvira Cesário, a primeira de minha família a nascer liberta. O que nos leva a constatar que da minha bisa até mim são apenas três gerações de liberdade. Graças a um esforço coletivo e ao meu mérito (não são questões excludentes, mas complementares), tornei-me o primeiro de minha família a acessar o ensino público e graças ao fomento público, pude custear meus estudos da pós-graduação desde o mestrado. Saber de onde vim, sempre me exigiu ter mais do que otimismo — ter esperança. É ela a orientadora de toda ação e que fomenta uma visão de que há, na realidade, sempre contraditória, imperfeição e possibilidade. Meu apelo é para que nos agarremos ao universo do possível e persigamos uma realidade conforme os nossos anseios. Há, sim, muita dificuldade, mas não podemos chegar a novos espaços já se portando como derrotados depois de tudo isso! É o momento de imaginar novos horizontes e a universidade é parte desse caminho. É um novo começo.
* Dante Alexandre Ribeiro das Chagas é doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro