![Acervo de objetos pessoais do museu do Holocausto - créditos: Freepik](https://diariodeminas.com.br/wp-content/uploads/2025/02/Acervo.jpg)
Acervo de objetos pessoais das vítimas do holocausto - créditos: freepik
02-02-2025 às 09h19
Marcelo Galuppo[1]
Era uma manhã de julho de 2007, não me lembro bem que dia era. Tudo era cinza e frio, desde o momento em que entramos nos ônibus. Deixamos a cidade às 08:00. Não sabíamos ao certo o que encontraríamos lá. Minha mulher me acompanhava, e havia vários amigos conosco, de muitos países, no comboio que seguia sua viagem rumo ao local. Chegamos por volta das 09:30, o estacionamento era amplo, mas já estava cheio de carros. Não havia muitos ônibus além dos nossos, mas logo eles chegariam (os motoristas foram enfáticos em dizer que deveríamos chegar cedo, porque ficaria lotado ao longo do dia).
Estávamos a poucos minutos do portão, e o caminho foi percorrido de forma silenciosa e solene. Entramos. Havia uma espécie de palanque à direita, onde uma banda recebia as pessoas diariamente, quando aquele lugar conheceu seu período mais intenso de atividade. Continuamos em silêncio até o primeiro edifício, que fora transformado em centro de recepção a turistas. Logo na entrada, havia uma frase do filósofo hispano-americano Santayana, escrita em uma grande parede branca: “Aqueles que não podem se lembrar do passado estão condenados a repetí-lo”.
Na primeira vitrine, malas, centenas delas, acumuladas umas sobre as outras, a maioria de couro cru, mas algumas revestidas de tecido xadrez. Estavam vazias, rotas, e pertenceram a pessoas que chegaram ali sem entender o que estava acontecendo. Havia em seguida uma vitrine de sapatos, amontoados, nenhum deles engraxado, todos sujos de terra. Não parecia haver nenhuma peça que correspondesse a outra, nenhuma possuía seu par.
Depois, uma vitrine com armações de óculos, e outra com relógios. Não lhes era possível usar nada de metal ali. Paradoxalmente, aquele lugar deveria ser a expressão da natureza orgânica da vida. Os óculos quebrados lembravam que era preciso deixar do lado de fora o que se aprendera. Os relógios parados lembravam que a vida conhecia enfim seu momento crucial. “Todos esses objetos foram usados por homens e mulheres que tinham esperança”, pensei.
Depois, outra vitrine, com cartas, dezenas de milhares delas, escritas para amigos e familiares dos remetentes, cartas que diziam que estavam bem, que a viagem havia sido dura, mas que agora eles iriam ser encaminhados para os chuveiros, receberiam a primeira refeição decente em dias, poderiam enfim dormir, e que tudo se ajeitaria, cartas que nunca foram entregues a seus destinatários.
E foi aí que minha mulher chorou: chegamos a uma vitrine com roupas de bebês, a maioria de recém-nascidos. Havia roupas muito simples, feitas de tricô, mas também roupas que pertenceram a crianças nascidas em famílias ricas, feitas de linho e bordadas a mão com desenhos de cachos de uva, romãs e figos. Tudo aquilo chegara ali há mais de oitenta anos, e estavam todos mortos.
Pensei: “é muito triste, e é preciso levar a frase de Santayana a sério, lembrar-se dela para não se esquecer do que importa, mas não há razão para chorar. Seria como chorar pelas crianças que foram mortas pelo Faraó no Egito, há quase três mil anos. Ou chorar pelos inocentes, que foram massacrados por Herodes, há dois mil anos. As pessoas que estiveram aqui já estão mortas há muito tempo. É preciso conhecer, para que nunca mais se repita”.
Foi isso que combinei comigo mesmo, mas somos muitos, e esqueci-me de combinar isso com meu inconsciente: durante meses sonhei que estava preso em Auschwitz-Birkenau, e que não conseguia escapar. Quase ninguém escapou, mais de um milhão de seres humanos foram mortos naquele lugar, a maioria deles judeus (mas também ciganos, homossexuais, comunistas e opositores em geral), e seus restos foram incinerados como lixo, uma forma de prolongar a ofensa que lhes era cometida mesmo após sua morte (o judaísmo ortodoxo, observante, exige que os corpos sejam sepultados sob a terra). Nos poucos fornos que restaram, o fogo ainda arde, mas agora sob a forma de velas votivas, acesas por pessoas desconhecidas em intenção de outras pessoas, também desconhecidas, que se irmanam na solidariedade diante de tanto horror.
Monumentos e cenotáfios foram instalados no campo, lembrando os que morreram ali, alguns heroicamente, tentando salvar a vida de mulheres e de crianças. Tudo agora parecia assombrosamente pacífico, nos amplos espaços nos quais, diz-se, ainda se encontram os restos daqueles que deixaram aquele lugar sob a forma das cinzas que saíam das chaminés. Tudo era de uma beleza quase sublime, e era isso que desconcertava a todos. Meus amigos alemães entraram cabisbaixos, e assim saíram de lá. Meus amigos japoneses não tiraram fotos. Eu tirei três ou quatro, mas em nenhum delas apareço sorrindo. O visor de minha câmera apareceu quebrado, horas depois, como se dissesse que era preciso que eu guardasse tudo intensamente só na memória, para que nunca mais nos esquecêssemos daquilo.
No dia 27 de janeiro de 1945, os poucos prisioneiros remanescentes no campo de Auschwitz foram libertados. Não tinham mais para onde ou para quem retornar. Quando saía, vi um grupo de adolescentes judeus, um deles envolto pela bandeira do Estado de Israel, cujo primeiro ministro parece ter se esquecido de Santayana: Segundo o jornal The Guardian, 13.000 crianças morreram em Gaza desde outubro de 2023.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, pela Editora Citadel, dentre outros. Ele escreve aos domingos no Diário de Minas.