De fato, podemos ser cientificamente identificados como Homo sapiens sapiens mas, doravante, poderemos evoluir – ou regredir – para ser conhecidos como Homo sapiens cellularis.
31-01-2025 às 09h49
Rogério Reis Devisate*
Ouvi história sobre uma mulher que ia ao cinema todas as tardes, na época da Segunda Guerra Mundial.
Ao término dos filmes, passava na igreja que ficava na esquina, onde orava pelo marido que tinha sido convocado a lutar.
Nos primeiros anos, orava para que ele retornasse são e salvo. Depois, passou a orar para que não estivesse trancado em alguma prisão inimiga, torturado e mal alimentado. Com o tempo, passou a orar para que a sua alma encontrasse descanso.
Quantos de nós, naquelas circunstâncias, não faria o mesmo para ter alguns terapêuticos momentos de distração?
Décadas depois do cinema proporcionar aquele ambiente, a televisão surgiu e, por um tempo, uniu e distraiu as famílias. Nada se compara, contudo, ao que os aparelhos celulares introduziram no cotidiano das pessoas, que usamos até enquanto assistimos TV! Através deles, afiamos a nossa individualidade e capacidade de ficar isolados do mundo real. Por vezes, nos distraímos com joguinhos e dancinhas ou fazemos correr as horas diante da infinidade de curtos vídeos amadores que nos bombardeiam com todos os tipos de estímulos. Noutros momentos, cedemos aos caprichos do nosso ego e postamos as fotos e imagens variadas que achamos que nos representam.
De fato, podemos ser cientificamente identificados como Homo sapiens sapiens mas, doravante, poderemos evoluir – ou regredir – para ser conhecidos como Homo sapiens cellularis.
Como Homo sapiens sapiens gostamos de viver em grupo. Com o cérebro desenvolvido, modificamos a natureza, criando tudo o que vemos à nossa volta, como a fala e a escrita, a filosofia, as religiões e a matemática. Criamos a roda, o relógio e a eletricidade. Produzimos, também, os computadores e celulares e os seus programas e aplicativos.
Ocorre que isso fez surgir algo que abala o contexto, pois esses programas e aplicativos nos isolam dos outros e, até, de nós mesmos. Em verdade, estamos afundando nas telinhas e no seu estimulante poder sedutor. Sem nos dar conta, passamos horas longe da realidade e viramos escravos do visor. Nos ônibus e trens, não mais olhamos pelas janelas, não mais conversamos com os vizinhos de poltrona, não mais apreciamos a paisagem. Nos jogos virtuais mergulhamos em mundos paralelos fantasticamente elaborados.
Quando forem levar jovens ao colégio, no desembarque peça-lhes para fechar os olhos por alguns segundos para, então, perguntar-lhes se o céu estava nublado, chuvoso ou ensolarado, se estava ventando e se havia ou não trânsito nas ruas. Grande é a probabilidade de que não tenham qualquer resposta, hipnotizados que ficaram pelas telinhas dos celulares. Antes de condená-los, respondamos se nós, adultos, estamos agindo de modo diferente, pois, por acaso, ao sair de casa contemplamos as árvores, praças, gente e uma nuvem branca que mancha o céu azul?
Estamos a nos transformar sem que percebamos. Não mais escrevemos e não mais lemos tantos livros. Pouco falamos como falavam os nossos pais e avós. Não contamos causos e histórias orais, tradicionais ou fantasiosas. Ficou para trás aquilo que nos contavam sobre velhos-do-saco, personagens fantásticos e heróis populares. Tudo isso é vítima do tédio que causam nos impacientes e ansiosos jovens, embebidos que ficam diante das cores, músicas e luzes dos aplicativos, tão viciantes aos nossos neurônios.
Esse universo abala a capacidade cognitiva, o aprendizado e a autoridade dos pais e professores. É crível que, na sala de aula, crianças hiperestimuladas não se enquadrem com facilidade. Como ficar ouvindo voz monocórdia e manuseando livros e papéis, que só veem e usam ali, naquele ambiente que correm para abandonar ao fim das aulas para novamente mergulhar no “seu” mundo virtual – e não mais aquele onde se brincava com os amigos com bicicletas e bolas e cães, mas o atual e que vivenciam, onde são filhos sozinhos, que brincam sozinhos, com telas que os fazem ser mais sozinhos, ainda que cercados de gente.
Vai erodindo a capacidade da imaginação criadora. Vai se abafando a capacidade de sonhar. Vai se desfazendo o que nos faz o que somos… Quem escreverá obras como A Divina Comédia, Vidas Secas e Dom Quixote? Quem repetirá o que fizeram as mentes de Leonardo da Vinci, Isaac Newton, Marie Curie, Einstein, Freud e Voltaire?
O que o Homo Sapiens Cellularis nos legará? Será, mesmo, mais insignificante e filosoficamente vazia a sua existência? Que obras relevantes edificará nessa construção que é a história da humanidade? Além disso, com o advento da Inteligência Artificial parece que nos tornaremos mais preguiçosos e menos capazes de pensar – no sentido mais pleno, absoluto e belo do que significa este verbo. Isso tende a nos apequenar e a deixar na prateleira do tempo a frase “Penso, logo existo” e todo o alto significado que lhe emprestara René Descartes, já que pensar dá trabalho, exigindo preparo, maturidade para assumir as opiniões e responsabilidades, base, sofismas, senso crítico e argumentação.
Vamos sendo menos exigentes como humanos e mais egoístas com os nossos caprichos. Tendemos a mais valorizar o “ter” acima do “ser” e o prazer imediato da aparência exibida. Queremos mais o que nos parece símbolos representativos de “sucesso” do que saber das noites viradas por estudo, do longo treinamento físico dos atletas, do preparo para a melhoria do desempenho e do exercício – seja qual for – que otimiza as aptidões naturais. Parece que todos querem a glória e o alto lugar do pódio, sem saber o que tem que ser feito para se chegar lá. Atenção: as frustrações em massa logo estarão chegando. Haja terapia e tarja preta!
Talvez o Homo Sapiens Cellularis até veja o diminuir gradativo do tamanho do seu cérebro, da sua capacidade mental e criativa, do travamento das suas habilidades teóricas e matemáticas, da piora qualitativa da linguagem falada e escrita, da transformação da fala em sons guturais e, como já expusemos noutros textos, do atrofiamento da língua – algo semelhante ao que ocorreu com o apêndice – enquanto os nossos dedos indicadores podem se desenvolver para melhor tocar telas reais ou virtuais no futuro – mais ou menos como aqueles alongados que tinha o personagem ET.
Aliás, já se notam jovens não falando frases inteiras (dizendo coisas como querer “beber a” em vez do tradicional “quero beber água”), o que, se for tendência duradoura, tem grande potencialidade de interferir no desenvolvimento da linguagem e da conjugação verbal.
Diferentemente da história da mulher que ia ao cinema e dele saia, retornando ao mundo real, estamos vivendo algo que cada vez mais confundirá os nossos cérebros, dificultando ou impedindo-nos de identificar o mundo virtual e o real, misturando sentimentos, emoções, razão, percepção e ilusão … Quem nos salvará de nós?
(*) Rogério Reis Devisate é advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ.