A História, seja a oficial, sejam as alternativas, é uma tentativa de tapar com a imaginação os buracos da memória
10-11-2024 às 13h:00
Marcelo Galuppo
Soube que um célebre autor europeu questionou a legitimidade da história recontada pelos povos colonizados, à qual faltariam tanto a pesquisa quanto a objetividade que caracterizam a verdadeira História (com H maiúsculo). Essa história alternativa seria convenientemente lacunar, intencionalmente parcial, perigosamente ingênua. Primeiro, porque desconheceria a reconstrução objetiva que os pesquisadores acadêmicos fizeram da história desses povos, e de seu esforço para fazê-lo de modo a dar voz aos próprios colonizados. Enquanto as narrativas alternativas da história decolonial foram construídas para forjar uma explicação que lhe fosse favorável, mas irreal, a História, a verdadeira história, seria muito mais inclusiva (ou “universal”). Segundo, porque, por faltar-lhe um método válido, o trabalho desses historiadores acaba sendo um esforço retórico e panfletário de desconsiderar os verdadeiros avanços conquistados pela academia para explicar as causas reais e as consequências do colonialismo, um mi-mi-mi sem sentido e mesmo danoso para aqueles que realmente querem o progresso da humanidade.
Não pude ler o texto desse autor, mas consegui ler uma interessante crítica a ele. Este outro autor dizia ser “surpreendente que tais pessoas suponham que não devemos ouvir a ninguém mais, mas apenas a eles, quando investigamos o passado, e que devemos nos informar da verdade que eles revelaram a partir apenas das fontes que eles detêm”. O problema mais grave da História eurocêntrica é a escolha, um tanto arbitrária, de que fontes são relevantes e por quê.
Segundo este autor, a história dos colonizadores é muito recente, se comparada à história milenar por trás dessas civilizações que eles dominaram, e a História que a descreve é ainda mais recente como disciplina, datando de, no máximo, meio milênio.
O problema com a História eurocêntrica seria que ela de fato “conhece pouco sobre aquilo que escreve, e escreve suas histórias a partir de suas próprias conjecturas”, e que os europeus “não tiveram o cuidado de registrar seus eventos enquanto ocorriam, e isso proporcionou, a quem depois tentou escrever a História, a oportunidade para o erro e mesmo para a mentira”, e por isso a transmissão do que realmente ocorreu foi melhor preservada pelos povos colonizados do que pelos europeus.
Uma interessante discussão, na qual é difícil não dar razão a este último autor. O mais impressionante disso tudo é que esses textos não foram escritos no século XXI, mas no século I da era cristã. O historiador grego Ápion disse, em um texto hoje perdido, que a história por trás da construção do Templo de Jerusalém, que acabara de ser destruído pelos romanos, era fantasiosa, e que o edifício era muito mais recente do que se alegava.
O judeu Flávio Josefo respondeu-lhe no livro Contra Ápion[2]. O argumento de Josefo, disse-me certa vez o professor Jacyntho Lins Brandão, é que a História (palavra grega que significa pesquisa) foi criada por Heródoto porque não havia registro do que se passara na guerra entre gregos e persas. Os judeus, ao contrário, tinham memória, registraram os fatos assim que iam ocorrendo, e por isso não precisavam de uma História no mesmo sentido.
A História, seja a oficial, sejam as alternativas, é uma tentativa de tapar com a imaginação os buracos da memória. Às vezes é bem sucedida e metodologicamente bem controlada. Às vezes, não: são as fake News do revisionismo e a história oficial, que vende o passado e o presente como glorificação dos vencedores.
Dizer que a imaginação intervém na construção da História não quer dizer que suas versões sejam falsas: a ciência recorre também à imaginação para conectar os dados da experiência sensível, assim como o juiz utiliza-se dela para conectar os eventos da prova quando julga. Mas isso é motivo suficiente para pensarmos que outras imaginações são possíveis quando se pensa o real, e que é preciso dar ouvido também às imaginações de que discordamos se queremos compreendê-lo.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor de vários livros, dentre eles #Um dia sem reclamar e #Um dia sem odiar (esses em coautoria com Davi Lago) e de Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, todos pela Citadel. [1] Consultei o texto na edição The Works of Josephus: Complete and Unabridged, publicado pela editora americana Hendrickson, em 1995. As citações correspondem a I, 2 (6); I, 3 (15), I, 4 (20). Há versões em português.