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Guerra de Merda

Ser pirata é coisa boa até os dias de hoje. E eles estão em todo e qualquer lugar onde a produção de matéria–prima se apresente. Um hábito secular, sem dúvida...

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23-06-2924 às 09h:29

José Altino Machado*

Começara a correr os anos 90. Já bastante agitados, por mudanças impostas por um intempestivo moçoilo que acabara por chegar à Presidência. A Amazônia, insatisfeita, estava em alerta, com a notícia da visita do príncipe Charles, herdeiro da Coroa Britânica, que a ela vinha com pretensão a navegar o Amazonas.

Sua presença exacerbava preocupações sobre soberania e exploração econômica.  Ainda mais que até aquela ocasião, nos verdadeiros corações dos homens do Norte o bem histórico dia da Adesão ainda vivia em memórias.

Sempre nos impressionara a “simpática e legal” pirataria inglesa... filmes com espetaculares imagens e bravuras a justificavam.

Ser pirata é coisa boa até os dias de hoje. E eles estão em todo e qualquer lugar onde a produção de matéria–prima se apresente. Um hábito secular, sem dúvida... E deles, como piratas legais, nunca se veem incursões expostas na mídia, estando sempre mascaradas como Reais. Ninguém discute a amplitude de seus interesses monopolizadores, acobertados hoje por ilusórias campanhas do meio ambiente. Esnobes realezas sempre encantaram homens fracos, principalmente políticos, por isso bem dominam e bem aparecem!

A preocupação era grande demais.  Há muito já discutíamos sem nos entendermos, o diabo da questão de soberania até interna, que o brasileiro costumeiramente identifica como coisa de soldado.

A procura de melhores informações, procuramos o dispositivo militar presente na Amazônia. Fomos recebidos pelo general de brigada, acho que único no Exército Brasileiro nascido e criado na Amazônia, Taumaturgo Sotero Vaz, então chefe do Estado Maior do Comandante-General de Exército Santa Cruz, do CMA. Os dois bons ativos participantes de períodos amazônicos agitados. Naquele Comando Militar, o general Taumaturgo confirmou: o herdeiro do trono inglês estava vindo e com esposa.

Após contactar influentes das áreas extrativistas e de cidades do interior, buscando uma análise sensata, registrei que todos consideravam a visita inoportuna e prejudicial. E a reação foi unânime: a visita seria um complicador.

Transmiti ao Comando Militar a onda de mal querência percebida. O nobre visitante não era bem-vindo. O Governo deveria desencorajar a pretensão da nobreza inglesa em subir com seu iate, singrando águas do nosso rio Amazonas e mais que isso, até mesmo sua vinda à Amazônia.

Tudo poderia gerar e trazer significativos dissabores diplomáticos, originados por descontentes reações locais. Debatíamos ainda contra as extremadas opiniões externas sobre a Amazônia e a vida das pessoas que a ocupam. Verdadeiro diálogo de surdos.  Nenhuma possível conclusão ou conciliação de propósitos. A vinda da aristocrática autoridade só faria piorar; sabíamos.

Com os brios machucados, como muitos e a minha lógica nacionalista em confusão, fui direto ao escritório, ainda em Manaus, para começar a fazer contatos por telefone. Buscava pessoas de peso, com as quais mantinha relações, gente que saberia muito bem, em conjunto, fazer uma análise sensata e ponderada do que me incomodava.

Não busquei críticos ferozes contra as intervenções forasteiras na Amazônia, nem aqueles imbuídos de conceitos nacionalistas mais arraigados e arcaicos. Procurei gente que absorvesse a informação e produzisse uma resposta equilibrada.

Pessoas a centenas e até milhares de quilômetros de distância umas das outras, reagiram da mesma forma. Consideravam um absurdo aquela visita ocorrer exatamente no período em que tentávamos resolver a exploração econômica em geral, naquele momento, em louca celeuma. Seria demais ainda termos que aguentar as sempre sanguessugas opiniões estrangeiras.

Aquela visita significaria, efetivamente, um agente complicador e mais desentendimento. A Amazônia, com sua floresta, estava no auge mundo afora. Na ocasião havia uma flatulência ambiental no exterior, e a conta da limpeza era sempre paga por nós.

Decidimos agir. Se o nobre estava vindo trazer "merda" às nossas famílias, a ele também levaríamos boa "merda" brasileira. Organizamos um bom plano: limparíamos fossas e encheríamos sacos plásticos, para com nossos aviões, bons pilotos que éramos, os lançar sobre o iate britânico. Com eles bombardearíamos o Iate Britânia. Assim a Amazônia também poderia sentir o cheiro do príncipe “esmerdeado”. Simples assim...

Enfim, tomaram conhecimento da nossa movimentação e que já bem treinados, os preparativos estavam avançados. A pontaria já estava boa.   Acertávamos os alvos com muita facilidade. Atingíamos até canoa.

A notícia se espalhou e as autoridades reagiram.

Com o fracasso das tentativas de negociação política para conosco, o governo brasileiro decidiu pôr fim que o príncipe não subiria o Rio Amazonas, limitando-se a ser transportado do mar a Belém, por helicóptero ao aeroporto, de volta para casa. O que nos levou sorrateiramente a aliciar os sempre dispostos a bagunçar: os jovens.

Iniciamos uma campanha urbana de agitação. Estudantes foram mobilizados, contaminando Belém com descontentamento. Na passagem, mesmo em pequeno percurso, da Capitania dos Portos ao aeroporto, o filhote da velha rainha velha, então príncipe, foi bem apupado tomando vaias por todo o trajeto. Uma demonstração clara do desagrado local.

Apesar do gostoso afago aos nossos Brasil-Amazônicos espíritos, a represália veio: o general de brigada Taumaturgo, talvez punido por nos acoitar, não foi promovido, sequer a divisão. O general de exército Santa Cruz, que já era quatro estrelas, se retirou, sem sanções.

E eu, aquietei-me, indo para casa dormir.

BH| Macapá, 23/06/2024

*José Altino Machado é jornalista

Nota do autor

Hoje, vivemos a sensação de que há uma vendeta contra os naturais ocupantes da Amazônia.

 

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