Histórias contadas na casa da vovó - créditos: divulgação
23-11-2025 às 11h40
Gisele Bicalho (*)
Na casa ancestral, a luz era visita inconstante. A energia elétrica era gerada pela Usina de Bento Lopes. Hoje está desativada. O silêncio de suas turbinas incomoda.
O que será feito desse patrimônio da nossa região?
Se preservar a memória viva e manter de pé a história é importante, aqui a prosa vai além e toma outro rumo. É que no tempo da delicadeza bastava uma chuva mais forte ou um vento atravessado para que a cidade mergulhasse no escuro. Mas ali, entre paredes antigas e móveis pesados, a escuridão nunca reinava sozinha.
Havia os castiçais. Um, de louça, delicado, parecia feito para enfeitar o quarto da Vovó; o outro, de metal — não sei dizer qual — tinha a firmeza de quem nasceu para resistir ao tempo. Quando a noite se tornava mais densa, eram eles que se erguiam, guardiões silenciosos da chama.
Da parede de uma das salas, um lampião nos espreitava. Era como se vigiasse cada sombra que ousasse atravessar o corredor. Também havia lamparinas bruxuleantes que tremiam ao menor sopro de vento, desenhando fantasmas nas paredes e dando vida às histórias que a casa guardava.
Era uma coreografia de luzes frágeis, mas persistentes. Cada chama carregava a memória dos que já tinham passado por ali, iluminando não apenas o espaço, mas também o tempo. A casa respirava diferente sob aquela claridade tímida, e até as conversas ganhavam outro tom. Mais lento, mais íntimo, mais verdadeiro.
Também era o cenário perfeito para a contação de histórias de assombração. Vovô Nenê levava seres fantásticos para o ambiente das caçadas que ele conhecia como poucos. As palavras acendiam medos, sombras ganhavam corpo, o silêncio se tornava cúmplice. O coração disparava, perdido no escuro. Só voltava ao compasso normal quando a energia elétrica retornava, rasgando a noite e devolvendo luz à casa centenária.
Vovô e Vovó se foram há tempos. Certamente estão em um lugar melhor. Mas dos castiçais, lampião e lamparinas não se tem notícia. Se perderam ao longo dos anos. Volta e meia resgato uma memória (agora dei pra isso; deve ser coisa do envelhecimento). Chega iluminada ora pela lamparina, ora pelo lampião. As mais doces me remetem ao castiçal. Talvez porque ficasse no quarto dos meus avós. Esse canto da casa era puro aconchego. Cheirava à pó de arroz e à leite de rosas.
Cheirava também à Vick Vaporube. Vovó Cocota frequentemente recorria ao medicamento para tratar o bando de netos de infinitas causas: do alívio da tosse à congestão nasal. Também servia para dor muscular, para amenizar sintomas relacionados a gripes e resfriados. Servia até para aliviar a coceira da picada de insetos.
O castiçal também ornamentava altares e se mostrava majestoso, iluminando ladainhas e terços rezados com a frequência que as dores do mundo e a fé exigem. Se era preciso apelar pela ajuda de Santo Antônio, o queridinho da minha avó, lá estava ele, iluminando o caminho que levaria à graça que certamente seria alcançada. Afinal, Santo Antônio não falhava nunca.
Hoje, penso que as lamparinas, o castiçal e o lampião eram mais do que utilidades domésticas. Eram símbolos de resistência, de cuidado e de memória. Cada vela acesa era um gesto de esperança, uma forma de dizer que, mesmo quando a cidade apagava, a vida seguia iluminada dentro de casa.
Ah, e quanto à Usina de Bento Lopes, alguém sabe dizer o que será feito desse patrimônio que guarda parte importante da história da nossa cidade? Há algum projeto voltado para a área cultural ou gastronômica? Com a palavra, os empresários e as lideranças políticas locais
Gisele Bicalho é jornalista

