Segundo o Estadão, defender a Pátria é respeitar a Constituição. Indaga-se: houve tentativa de golpe? É o que o autor deste artigo responde à pergunta
01-12-2024 às 08h18
Mário Lúcio Quintão Soares*
Em termos de Ciência Política, para se caracterizar um típico golpe de Estado, os seus protagonistas devem almejar o poder e estar inseridos politicamente no próprio Estado.
Apesar da evolução de complexas burocracias profissionais estáveis nos Estados constitucionais, surgem situações em que essa burocracia profissional tenha como práxis um ativismo político intenso e articule ações nefastas contra a legitimidade do poder estatal.
Nesses casos, a ação golpista se manifesta quando uma burocracia se investe de uma liderança política para impor uma determinada direção ideológica ao Estado ou quando se insurge contra um mandatário constitucionalmente eleito, conforme as regras do jogo democrático.
Nessa perspectiva, a Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro como líder da organização criminosa que planejou um golpe de Estado para mantê-lo no poder após a derrota nas eleições de 2022.
Membros da burocracia estável, especificamente das Forças Especiais do Exército e associados do ex-presidente Bolsonaro, tentaram dar um golpe de Estado, com o intuito de subverter a posse de Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice, Geraldo Alckmin. O macabro esquema, que incluía a captura e até mesmo o assassinato do ministro do STF, Alexandre de Moraes, e do presidente e do vice eleitos, recebeu por parte dos insurgentes a designação de “Punhal Verde e Amarelo”.
“Uma loucura falar em golpe, uma loucura. Golpe com um general da reserva e cinco oficiais? E outra coisa, golpe existe em cima de uma autoridade constituída, que já tomou posse. O Lula tinha tomado posse? Ninguém tinha tomado posse. Só se fosse em cima de mim o golpe”, retrucou Bolsonaro, em busca de narrativas para se contraporem ao inquérito instaurado na Polícia Federal.
Entretanto, a narrativa que integra o relatório enviado pela Polícia Federal ao STF cujo sigilo foi retirado em 26/11/2024, é outra. E responsabiliza o ex-presidente e mais 36 pessoas por três crimes: tentativa de golpe de Estado, abolição do Estado Democrático de Direito e organização criminosa.
Consoante a Polícia Federal, o golpe planejado por Bolsonaro tão somente não se concretizou por circunstâncias alheias à sua vontade.
Por ironia do destino, os crimes contra o Estado Democrático de Direito foram inseridos no Título XII do Código Penal pela Lei nº 14.197/2021 (sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro) e estão previstos entre os artigos 359-I e 359-R do Código.
Com as tensões que envolveram as últimas eleições presidenciais e a transição governamental, esses delitos geraram polêmica no país. Em especial, os crimes de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” (artigo 359-L) e “golpe de Estado” (artigo 359-M), ambos recepcionados no Capítulo II – Dos Crimes Contra as Instituições Democráticas.
Percebe-se que o tipo penal que abrange a abolição do Estado Democrático é novo e deve ser analisado com cautelas.
Não obstante, parece ser consenso no mundo jurídico que o golpe de Estado não consiste em qualquer tipo penal.
Esta ação nefasta se revela sempre obra coletiva, com divisão de trabalho e tarefas. Por isso, as condutas devem ser analisadas em conjunto.
Muitas das condutas, tomadas individualmente, constituem ações neutras, mas no conjunto implicam início de execução.
Salvo melhor juízo, mesmo que o golpe de Estado não tenha sido concretizado, a tentativa deve ser punida.
O relatório completo da investigação não está mais sob sigilo, pelo que as informações divulgadas asseveram um conjunto de atos que ultrapassam a mera preparação.
Dentre as narrativas do relatório, verifica-se que os protagonistas, além de escolherem estratégias de assassinato, recorreram a técnicas de ocultação e anonimização para dificultar o rastreamento por parte das autoridades, o que demonstra a consciência da seriedade e da ilicitude das ações nefastas praticadas.
Em síntese, caracteriza-se um conjunto de atos praticados nesse
sentido, devidamente tipificados na legislação, que começa desde antes das eleições.
Espera-se que, em busca da consolidação da democracia brasileira, o STF realize um julgamento justo, mediante o devido processo legal.
*Advogado militante. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Membro consultor da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do CFOAB.