
Getting your Trinity Audio player ready...
|
24-02-2025 às 10h06
José Luiz Borges Horta*
Todos sabemos que, para a Independência do país e a formação de um quadro de
administradores e juristas aptos a uma consciência crítica nacional, o Império do Brasil
optou por centralizar a formação de suas elites dirigentes em duas únicas faculdades de
direito — ambas afastadas do burburinho da Corte, uma em Olinda, hoje no Recife, outra
em São Paulo, ainda hoje no Largo de São Francisco. Com a República, que se deu afinal
como uma colmeia oligárquica construída sob o pálio de baionetas e militares mais ou
menos preparados para substituir o ideário utópico e visionário do Império pelo ideário
positivista, mas desenvolvimentista, das Forças Armadas brasileiras, mais tarde viria uma
ampliação da formação das elites dirigentes. A jovem República facultaria a cada província
do Império, agora elevada a estado-membro da Federação, criar e manter sua própria
faculdade de Direito e formar sua própria elite dirigente, pensante e crítica.
Foi assim que, no alvorecer da República, foram sendo fundadas pelo país e mais tarde
incorporadas às universidades que afinal foram federalizadas pelo regime de exceção
implantado no país entre os anos de 1965 e 1985, essas universidades originárias. Somadas
a umas raras instituições fundadas depois episodicamente, constituem a espinha dorsal da
formação jurídica no Brasil, dada pelas faculdades de Direito integrantes das Instituições
Federais de Educação Superior (IFES) e das universidades estaduais paulistas e
fluminenses.
Em 1954, no entanto, já era patente o desajuste entre a missão daqueles educandários
jurídicos e sua estrutura interna, já que seguiam como seguem se inspirando na estrutura
ancestral da Faculdade de Direito de Coimbra, sem conseguir atingir os problemas reais de
um país em franco desenvolvimento e em busca de protagonismo internacional.
Santiago Dantas, na aula inaugural de 1954 da Faculdade Nacional de Direito da
Universidade do Brasil, hoje UFRJ, mostrou o descompasso entre a tarefa de formação
crítica e a estrutura ossificada, dogmatizada e sem nenhuma possibilidade de que os
estudantes de Direito pudessem constituir percursos diferentes no decorrer de suas
formações universitárias.
Setenta anos depois, embora o texto da aula inaugural Educação Jurídica e Crise Brasileira tenha
sido e venha sendo um dos mais debatidos dentro dos cenários internos de reforma dos
currículos jurídicos, nossas faculdades de Direito, especialmente aquelas que não tem tarefa
meramente profissionalizante (como se poderia talvez pleitear para as escolas privadas), ou
seja as faculdades de direito públicas e gratuitas, seguem imensamente semelhantes às
faculdades do Império, com uma proporção elevadíssima de disciplinas obrigatórias, um
incontrolável fetiche em ensinar leis dispositivo a dispositivo em sala de aula, e uma
festejada incapacidade de preparar os quadros discentes para a vida real do Direito.
Lembrava um respeitado catedrático na Casa de Afonso Pena (a UFMG) que o ensino
jurídico sempre viveu no retrovisor: o professor leciona para os alunos com os olhos
postos na aula que teve quando aluno de um professor que por sua vez também lecionava
mirando as aulas que tivera em seu próprio tempo de estudante. Ora, reclamava este
catedrático, não seria nossa tarefa preparar os estudantes para o direito do futuro, ao invés
de repetir a ele o direito que pertencera ao passado dos nossos próprios professores?
Vivemos tempos perigosíssimos de judicialização da política e sabemos que as capacitações
políticas são tarefa fundamental da tradicional cadeira de Teoria do Estado. É de se indagar:
como anda o ensino em Teoria do Estado nas nossas faculdades de Direito? Continua com
o mesmo prestígio e importância que tinha ao tempo de seus grandes catedráticos? As aulas
sobre democracia e suas tantas e distintas possibilidades são tomadas pelos alunos de
Direito como aulas de relevo para seu futuro, ou apenas uma disciplina de passagem para
que sejam iniciados nos mistérios do Direito Público como um todo? Como esperar uma
magistratura ou um ministério público à altura dos desígnios do Brasil se a formação em
política, democracia, liberdade, Estado de Direito, não é ou não foi priorizada em seus
bancos escolares em relação à infértil e reiterada leitura e debate de dispositivos
normativos?
Mais: com a atual revolução geopolítica em trânsito no planeta, cada vez mais as elites
dirigentes, assim como as magistraturas e os ministérios públicos terão de se debruçar e
muitas vezes tomar decisões de alto impacto geopolítico. Estamos em plena época da
judicialização da Geopolítica. Mas como judicializar a Geopolítica se nos estudos jurídicos
a Geopolítica não tem espaço? Como é possível seguir em um mundo cada vez mais global
sem que tenhamos uma educação jurídica minimamente preparada para iniciar os
estudantes nos meandros geoestratégicos? Até quando vamos, como faculdades de Direito,
ignorar o fato de que já está se configurando um novo campo de conhecimento de natureza
geojurídico? Esses conhecimentos de Geopolítica não deveriam ser integrados à matriz
curricular de Direito e albergados exatamente no mesmo ambiente ontologicamente pós-
disciplinar da Teoria do Estado?
A Faculdade de Direito da UFMG operou, nos anos 1990, uma verdadeira revolução
jusfilosófica, liderada por Joaquim Carlos Salgado, então catedrático de Teoria Geral e
Filosofia do Direito, que então redimensionou o conjunto de disciplinas jusfilosóficas
dotando a UFMG do maior e mais consistente arcabouço crítico-reflexivo disponível no
contexto da educação jurídica brasileira. Não contente, Salgado, acompanhado pelos hoje
titulares das tradicionais cátedras de Direito Constitucional e de Teoria do Estado, Marcelo
Andrade Cattoni de Oliveira e José Luiz Horta, naquela mesma década fundou um
bacharelado em Ciências do Estado no âmbito da Faculdade de Direito, buscando novamente
albergar na Casa as principais discussões políticas ideológicas do tempo presente. Graças a
essas duas medidas, hoje a Faculdade de Direito da UFMG conta com mais disciplinas
zetéticas (ou críticas, ou jusfilosóficas) que qualquer outra e um volume proporcionalmente
maior de docentes das áreas críticas (por conta também das Ciências do Estado), figurando sereníssima como aquela que oferta o melhor ambiente acadêmico em sede do Direito no
Brasil. (Alcançando até no mestrado e doutorado o conceito sete, máximo possível).
Isso apenas aumenta a nossa responsabilidade em fazermos de Minas e de sua faculdade
matricial um centro cada vez mais avançado de produção do saber e de formação de
quadros de mais elevada qualidade. Para isso, é preciso ouvir Santiago Dantas e é preciso
ouvir as angústias do tempo presente. Nossas faculdades têm de ter muito menos
disciplinas obrigatórias do que possuem, ao passo em que a proporção de disciplinas
críticas, e dentro delas a Teoria do Estado (necessariamente abarcando também conteúdos
de Geopolítica, Geoestratégia e Geodireito), seja cada vez mais definidor de um perfil de
futuro egresso.
Os bacharéis pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais só podem
ser aqueles que possuam a massa crítica mais bem desenvolvida para lidar com os mais
elevados problemas de Estado que se colocam a Minas, mas sobretudo ao Brasil e ao
mundo neste terceiro século de Faculdade de Direito, de Brasil independente e do Diário de
Minas — no qual passamos a exercer esse sonho juvenil de atividade jornalística, a convite
de sua direção e ela agradecendo.
José Luiz Borges Horta é Professor Titular de Teoria do Estado na Universidade
Federal de Minas Gerais e professor visitante sênior PrInt-CAPES na Facultat de Filosofia
da Universitat de Barcelona. Contato: zeluiz@ufmg.br