
Darly dormia, mas o sono eterno ali no teatro.
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29-05-2025 às 08h02
Caio Brandão*
O espetáculo chegou ao fim, no Palácio das Artes, na avenida Afonso Pena, e as pessoas deixaram vazio o Grande Teatro, em Belo Horizonte, sempre reservado a eventos de maior relevância. Numa das poltronas, retardatário, permanecia, em sono aparente, o padre Darly, que à época havia sido nomeado, pelo então governador Itamar Franco, como assessor para a redação de missivas de teor reservado e de caráter pessoal.
Darly, que não mais era clérigo, carregava, para sempre, a marca indelével do sacerdócio, dormia, mas o sono eterno, porque morto se encontrava.
Morreu em meio do transcurso do espetáculo, com elegância e rigorosa discrição, embalado pelos sons que escolheu ouvir e da forma como pretendeu escutá-los. Na passagem não chamou, sequer, a atenção daqueles que estavam ao seu lado, embora fossem as cadeiras próximas umas das outras.
Boa noite, meu amigo Darly Gomes Soares.
Estávamos em Ipatinga, no Vale do Aço, na terra da Usiminas, hospedados em hotel típico de Interior, sem ostentação e dotado de conforto aceitável. Fomos a serviço de uma autarquia estadual e a nossa meta contemplava levantamentos socioeconômicos, mediante entrevistas com autoridades locais e moradores da cidade, além de contatos com prefeito e vereadores.
Optamos por começar com os nativos, em um dancing modesto, próximo à nossa hospedagem, recomendado pelo porteiro do hotel. Lugar simples, muitas luzes, com mistura de cores agressivas, e despontando, suspenso no centro da pista de dança, uma esfera giratória feita de fragmentos de espelhos, a emitir reflexos atordoantes e hipnóticos.
Darly, apesar de sacerdócio deixado em passado remoto, mantinha ar episcopal e olhava, com reserva, as moças que dançavam se remexendo com os trejeitos da época. Elas se vestiam com ousadia, mas no estilo cerca, com as vestes protegendo a propriedade e sem tirar a visibilidade.
Malgrado a sua aura de superioridade, uma das garotas, extrovertida, sentou-se à nossa mesa e se encantou com a fisionomia taciturna do clérigo que, com ar melancólico, desdenhava dos atributos da mercadoria, que a casa oferecia em cardápio desinibido e de valor educado. A jovem era impetuosa. Começou tocando de leve a mão do Darly, que cortesmente retirou a dela, e encaminhou a sua em direção a bebida colocada sobre a mesa, um suco amarelo, de sabor artificial.
As mãos da garota, ambiciosas, não se contentaram com o cotovelo, seguiram empreendendo prospecções mais vigorosas. Darly se contorcia, em desconforto e malabarismo constante, tentando se proteger não apenas das mãos da garota, mas, também, dos seus pés e joelhos que, por sob a mesa, trabalhavam competentes e se esfregavam no que encontravam da cintura para baixo.
Exausto, Darly disse à garota que ela devia se conter, por ser ele um vigário, com sacerdócio em Salto da Divisa, o que, realmente, respeitado o tempo decorrido, era meia verdade.
A jovem não se deu por vencida, retrucou perguntando se Darly já tinha feito amor. Darly, com firmeza, afirmou não ser dado às práticas sexuais e que era virgem, estando as suas devoções voltadas exclusivamente para Jesus.
A jovem, inconformada, e temerosa de competir com Cristo, disse ao Darly, cautelosamente, que ela poderia iniciá-lo nas práticas elementares da sexualidade e de forma delicada, haja vista ser muito experiente e capaz, porque os pênis que ela conheceu, se emendados fossem, dariam para ir de Ipatinga ao Rio de Janeiro, e voltar.
Darly, veterano do confessionário e experiente nos aconselhamentos que ofereceu ao longo da vida sacerdotal, retrucou:
“Minha filha, você, com essa rodagem toda e eu com apenas quinze centímetros? Acho que a minha contribuição nessa quilometragem vai ser muito modesta.”
Deixando o amigo Darly, com as suas evasivas inteligentes, acordo na memória o saudoso Roberto, com quem convivi na empresa e fora dela por mais de duas décadas. A nossa relação, em que pese a subordinação natural existente entre dono e empregado, tinha duas vertentes: a profissional, com a vigência de todos os seus paradigmas, e a pessoal, que não se misturava com primeira.
Fora da empresa era comum nossa presença, juntos, em eventos diversos, principalmente políticos, em cujo meio Roberto costumava se sentir fragilizado. Alguns políticos agiam agressivos nas abordagens, e Roberto era pessoa cuja polidez e educação lhe criavam dificuldades para se safar de situações embaraçosas. Nessas ocasiões o NÃO era comigo – minha especialidade. Eu sacava o não e atirava como pistoleiro e sem remorso.
A empresa era poderosa, tinha imensa capilaridade no país, acesso franco e rápido ao poder, em todos os níveis, além de contar com cofre capaz de atender às mais extravagantes demandas. E, para estimular o imaginário das pessoas, além dos seus sócios, Roberto também tinha no bolso a chave do baú.
Era junho, mês das festas que multiplicam fogueiras, quentão, caldo de feijão e derivações etílicas. No sítio, o governador recebia, eufórico, os amigos de sempre, políticos, familiares e entourage das vizinhanças. A festa era tradicional, naquela ocasião acontecia próxima às eleições.
Roberto, apesar de notório por ele mesmo, virou estrela cadente, iluminando as demandas dos candidatos e o seu (deles) imaginário contemplado pelos altos valores financeiros demandados pelas campanhas.
Um chegava com tapinha nas costas, outro com a mão estendida, alguns com ousadia indevida, outros, em contraponto, com reverência exacerbada e, com destaque, um político que, estando o Roberto de costas, lhe aplicou no calcanhar, alguns leves chutes com a ponta da bota. Roberto confundindo a estocada com picada de cobra, saltou de banda, arrepiado, mas se tratava de outro tipo de picadura.
Aliás, picadura de político no período pré-eleitoral é comum, porque as picadas chegam pessoalmente, mediante recado, por telefone, via internet, não importa o meio, o negócio é picar.
O governador, em final de mandato, se esforçou para socorrer o amigo, inclusive no banheiro, quando de lá retirou alguém alcoolizado, que, dirigindo-se ao Roberto, com uma mão regia argumentos, gesticulando eufórico e com os olhos injetados, enquanto, que, com a outra, tentava encontrar, no interior da calça, o pênis que jazia foragido.
Roberto não havia bebido, não houve tempo. Se esquivando de um, se desculpando com outro, contornando conversa e se revezando de grupo, em grupo, ele não suportou a pressão e, falando baixo, com o governador, disse:
“Amigo, vou saltar fora, porque estou me sentindo fantasiado de bunda em festa de tarados”.
* Caio Brandão é jornalista é advogado, jornalista e administrador de empresas. Na iniciativa privada atuou em multinacionais brasileiras e no setor público, além de conselheiro de bancos oficiais, foi responsável pela implantação do Projeto Jaíba II, o maior projeto de irrigação da América Latina, e presidente da Companhia de Saneamento do Paraná – SANEPAR – Atualmente é um diletante do Direito e dedica-se a causas relevantes e de interesse público. Contato: caio.brandao@uol.com.br