Estrangeirização das terras: domesticação em vez de guerras
Os países, tal qual conhecemos, parecem se enfraquecer diante da força inimaginável do capital nas mãos de grandes transnacionais e o controle das informações globais nas mãos de empresas privadas
Rogério Reis Devisate*
01-12-2023 às 07:37h.
O economista francês Jacques Généreux escreveu: “E amanhã, quando o horror econômico e o horror político comparecerem ao encontro marcado por nosso imobilismo e nossos filhos perguntarem: vocês dormiram enquanto estavam de guarda? Pior, ainda, não dormiram, reconheceram o inimigo e não disseram nada, não fizeram nada? – o que responderemos?”
Estamos no limite de um novo tempo. Os países, tal qual conhecemos, parecem se enfraquecer diante da força inimaginável do capital nas mãos de grandes transnacionais e o controle das informações globais nas mãos de empresas privadas, como Google e outras, etc. Outrora, pensávamos nas grandes potências, como Estados Unidos, Alemanha, União Soviética, Japão, China e outros. Hoje, pensamos nas mãos que controlam os governos e muito se escreve no mundo a respeito, com importantes obras de Moisés Naim, Gerard Colby e Charlote Dennett, Noam Chomsky, Dambisa Moyo e outros.
Precisamos refletir e pensar além do óbvio – por questão de existência! Talvez precisemos de um choque de realidade, como ocorreu nas campanhas contra o fumo, que passaram a mostrar imagens marcantes nas embalagens. Precisamos considerar que o mundo está cada vez mais instável. Essa situação não ocorre porque há mais guerras do que no passado, cataclismas, fome ou crises migratórias. A questão é que a história é cíclica e as coisas tendem a se repetir, enquanto tudo muda e nos adaptamos. Temos a virtude de nos esquecer de certos acontecimentos e as nossas memórias até são capazes de nos proteger de traumas e indesejadas ocorrências.
No entanto, temos uma tendência a dizer que as coisas eram melhores, no passado – o que, nem sempre, é verdade. Os seres humanos fizeram muitas guerras e batalhas, ao longo da história, por busca de novas dominações territoriais, cobiça por água, terras férteis e áreas ricas em minerais e matérias-primas. Também já guerreou por inveja e ganância e, até, por coração partido, como narrado por Homero, na Ilíada, sobre a mitológica Guerra de Tróia.
Contudo, nas décadas recentes, se surgiram armas capazes de destruir a vida na Terra, levando-nos ao paradoxo de ter tecnologia que não se deseja usar, também tivemos a realidade de cifras astronômicas em equipamentos militares e custos para manutenção dos exércitos, além do acompanhamento ao vivo da evolução das batalhas, por conta dos satélites espalhados ao redor do Globo e das mensagens que circulam facilmente, tanto pela mídia quanto por aplicativos, nos telefones portáteis.
Esse monitoramento das estratégicas manobras e das técnicas empregadas, além da repercussão dos horrores das guerras, entre os civis, deixa que sejam menos desejáveis do que no passado o emprego das tradicionais manobras com exércitos, armas, bombas e vítimas entre militares e, obviamente, populações inocentes.
Como advertia Al Gore, que foi vice-presidente dos Estados Unidos, “no passado, as lutas por terras sempre foi uma causa comum para os confrontos bélicos”. Percebemos que, recentemente, aquela realidade foi substituída pela aquisição de terras por empresas estrangeiras, num processo que se faz cada vez mais evidente e merece muita atenção.
Isso reflete a força do interesse de países ou das potências econômicas privadas que orientam a economia transnacional. Todos valem-se da realidade absurdamente mais sutil da aquisição das terras. Pagando, dá-se a impressão que se fez um “bom negócio” para todos e que ninguém teria o que reclamar. Ocorre que o valor da terra – com a água, inclusa – está muito além do preço envolvido. Valor e preço são coisas distintas… Além disso, a questão envolve mais do que mero negócio privado entre um bem, já que a grandeza das terras e a parcela que representam do território dos países refletem um cenário distinto, de caráter público, com pitadas de Soberania Nacional, de geopolítica e da vida política e social.
Estamos falando de um processo que, como um câncer, se espalha sem alarde e que, quando aparece e se faz notar, em muitos casos grita que já é tarde demais para se resistir. Aliás, a resistência é um processo de manifestação da existência humana. Existimos, quando resistimos, quando criticamos ou concordamos, quando externamos as nossas ideias e razões críticas.
Parafraseando o pensamento de que “navegar é preciso, viver não é preciso”, sobre a necessidade e as glórias das conquistas expansionistas portuguesas, ao tempo das Grandes Navegações, poderíamos dizer que, hoje e cada vez mais, se torna vital para a existência de povos e nações ter a altivez e a capacidade de pensar acerca de políticas e atos expansionistas, mediante as pretensões de aquisição de terras em países estrangeiros.
Já somos um dos 5 países do mundo que mais permite e facilita a aquisição de terras por estrangeiros – e isso não nos trouxe vantagens absolutas, não é mesmo? É bom refletir que não estamos como um dos países que adquirem, mas dos que têm as suas terras adquiridas. Sempre tivemos fartura de terras e águas e bom clima – em que se plantando, tudo dá, como já se registrou.
O mundo muda e mudou e aumenta a cobiça pelas nossas riquezas, terras férteis e capacidade produtiva. Diante de fatos havidos no passado e do teor da CPI da venda de terras a estrangeiros, de 1967, no Congresso Nacional, pela Lei nº 5.709/71 o país regulou a venda de nossas terras a estrangeiros, que a Constituição Federal vigente quer mesmo que seja limitada, como dispõe em seu art. 190. Ocorre que, alheio a tudo isso, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2963/2019 que pretende flexibilizar as regras existentes e facilitar ainda mais esse processo. Já foi aprovado no Senado – apesar da Consulta Popular havida em seu site indicar que 6.585 pessoas eram contra e apenas 131 a favor – e, agora, tramita na Câmara dos Deputados.
Até quando e até quanto nos permitiremos dar do nosso berço esplêndido a outros? Já deixamos levar daqui o nosso ouro, as pedras preciosas, o ferro, madeira, minérios vários … O quanto isso nos deu, nos legou ou nos engrandeceu?
Se desejam algo, é porque o objeto desejado tem valor. Não temos tido a virtude de valorizar o que essa terra abençoada nos deu – talvez, porque tenha sido “de graça” e sem sangrentas batalhas, como a Guerra Civil nos Estados Unidos, a Revolução Francesa e outros conflitos pelo mundo.
Aliás, por falar em Estados Unidos, no início de 2023 o país se surpreendeu com a aquisição de 100 hectares por chineses e já se reposicionou contra esse modelo de aquisição. Reflitamos: se apenas 100 hectares lá, gerou essa reação, como somos complacentes quando outros aqui adquirem milhares de hectares? No exterior, também, consta que a África tem sido objeto de grandes aquisições…
Saberemos cuidar da galinha dos ovos de ouro? No dia em que as nossas melhores terras se forem, que a água potável estiver sobre controle de não nacionais e que os preços dos produtos ficarem impraticáveis para o nosso povo, perceberemos o quanto fomos inocentes…
Seguindo esse exemplo e o movimento iniciado nos Estados Unidos, é crível que, no futuro, aqui, seriam seriamente enfraquecidas até as bandeiras de luta pela terra e pela reforma agrária, pela diminuição das terras férteis disponíveis e a ação das grandes transnacionais do setor. Talvez, pela sua própria existência futura, movimentos envolvidos nessas frentes devessem se posicionar contra a tramitação daquele projeto de lei, antes que seja tarde demais, como nos alerta o pensamento que inicia este ensaio.
O monopsônio também atingiria os produtores instalados, hoje, que sofreriam concorrência interna das grandes transnacionais que, por seu modo de operar e grande capacidade de compra, acabam precificando os produtos…
Também está em jogo a Soberania Alimentar, conceito que não parece nos preocupar (ainda), enquanto formos ricos em água e terras férteis, embora seja algo que assusta quando se pensa no plano global.
Enquanto isso, a estrangeirização de terras se amplia e corrói estruturas até aqui sólidas, enferrujando mecanismos econômicos, políticos e sociais, enquanto domestica governos, a economia interna de nações e os povos dominados, nesse processo mais simpático da compra para a aquisição de mais terras e água do que as guerras tradicionais. Mas, reflitam os, não seria uma guerra, apenas em outros termos? Precisamos movimentar nossas peças, nesse tabuleiro.
*Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária.
4 comentários
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Excelente artigo! O tema é muito relevante e que o Brasil precisa de soluções urgentes para evitar que a sua soberania e o seu desenvolvimento sejam comprometidos pela venda de terras para estrangeiros.
Acho relevantes os temas publicados traz conhecimentos em temas importantes
Muito bomMuito verdadeiroChega a ser apocalíptico, mas infelizmente a sociedade curte football, carnaval e shows.O império romano dominou o povo com pão e circo!
Muito bom !Parabèns