Para AGAMBEN, nos Estados contemporâneos predomina a legalidade formal, mas não há a devida legitimidade
08-12-2024 às 08h08
Mário Lúcio Quintão Soares*
O discurso da autocracia se dissemina em parte significativa da comunidade jurídica brasileira que, além de distorcer a interpretação do texto constitucional, suscita a possibilidade do controle ideológico das instituições, especificamente do STF.
Não obstante, acredito na premissa democrática de que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.
Após a queda do regime de exceção de 1964, promulgou-se, legitimamente, a Constituição cidadã de 1988, recepcionando o gradativo processo de democratização do Brasil estribado na soberania popular.
Em minha obra Teoria do Estado, na sexta edição, publicada pela Intersaberes, busco realçar a repercussão normativa do princípio da tripartição dos poderes no ordenamento pátrio, que acaba se degenerando no decorrer do processo histórico. Percebe-se, na experiência constitucional tupiniquim, sempre a possibilidade de usurpação de competências em sociedade conflituosa.
Como professor de Direito Constitucional, em vários artigos publicados, considero que os governos que se dizem democráticos recorrem constantemente ao estado de exceção, em situações emergenciais em que se pode e se deve restringir a liberdade individual.
O problema que se suscita consiste em um dilema atroz.
Será que os governos que se convertem em estado de exceção podem ameaçar as democracias ao usarem como argumento a proteção e a preservação das pessoas?
Nessa linha de argumentação, a emergência acaba atropelada por medidas autoritárias, assumindo caráter potencialmente perigoso aos direitos humanos.
O estado de exceção consiste, pois, em um mecanismo jurídico de defesa da democracia. Caso haja uma ameaça externa, os direitos e garantias individuais seriam suspensos para que o inimigo fosse combatido.
Uma vez o perigo neutralizado, a democracia seria reestabelecida. Ou seja, como o próprio nome sugere, seria uma anomalia, uma exceção à regra democrática.
O estado de exceção, portanto, na evolução do processo histórico do constitucionalismo, sempre foi considerado um dispositivo provisório peculiar a situações de perigo.
Hoje se tornou um instrumento normal de governo. Com a desculpa da necessidade de maior segurança para se combater o terrorismo, o estado de exceção se converteu em norma.
O terrorismo se demonstra inseparável do Estado constitucional porque define o sistema de governo. Sem o terrorismo, o sistema estatal não poderia funcionar. Há dispositivos como o controle das impressões digitais, ou o escaneamento que se faz nos aeroportos, que foram adotados para controlar os criminosos e agora são aplicados a todos.
Da perspectiva do Estado, o cidadão se transformou em um terrorista virtual. Do contrário, não se explica o acúmulo de câmeras que nos vigiam em todas as partes. Somos tratados como criminosos virtuais.
O cidadão é um suspeito, numerado, como em Auschwitz, onde cada deportado tinha seu número. Com algo a não perder de vista: o estado de exceção dos campos de concentração é o mesmo que impera nos destinados aos refugiados.
Tudo isso conduz a uma quebra da legitimidade do poder.
Como consequência, os cidadãos confiam menos nas urnas, e a abstenção cresce. A extrema direita, sorrateiramente, ocupa o espaço político, com o discurso de maior segurança pública acoplado à economia de mercado.
Um fenômeno que não havia ocorrido antes e que está relacionado com o fato de as pessoas terem se dado conta de que os governos não são verdadeiramente legítimos. Legais, sim; mas não legítimos. Daí se enaltecer o Estado Mínimo.
Para AGAMBEN, neste ambiente de caos, caso os perigos que ameaçam o Estado sejam difusos, difíceis de se identificar, o expediente jurídico da exceção pode se tornar permanente. O exemplo principal é o próprio nazismo. A Constituição de Weimar não foi revogada pelo Terceiro Reich; porém, com a justificativa de proteção do povo alemão, instalou-se um estado de exceção. Proteção contra quem? Os riscos eram os comunistas e os judeus. Poderia ser qualquer um. Desse modo, o inimigo nunca seria neutralizado e a exceção transformou-se em regra.
*Advogado militante. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Membro consultor da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do CFOAB.