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ERA UM HOMEM DE PERNA ESQUERDA MECÂNICA

ERA UM HOMEM DE PERNA ESQUERDA MECÂNICA

Gosto de fazer isso, andar. E aproveito enquanto ando para reparar nas coisas ao redor, principalmente as coisas naturais, e observar o semblante das pessoas.

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04-10-2023 às 09:10h.

Rogério T. Guimarães*

Havia saído de casa, no Bairro Santo Antônio, a pé rumo ao Mercado Central, no Centro de Belo Horizonte, com intuito de fazer mesmo uma caminhada.

Desci a Rua Mar de Espanha propositalmente, com a intenção de me exercitar os músculos das pernas ao descer a escadaria que há ao final da rua entre dois prédios de apartamentos.

São 122 degraus. O final da escadaria dá para a Praça Jornalista Jofre Alves Pereira, o fundador do Jornal da Cidade.

Gosto de fazer isso, andar. E aproveito enquanto ando para reparar nas coisas ao redor, principalmente as coisas naturais, e observar o semblante das pessoas.

Quem é de “bom dia” a gente observa logo por meio do semblante. Mas é possível notar nas pessoas um certo temor de não se sabe bem o porquê. E não é sem razão, afinal, estamos construindo um mundo inóspito.

Cheguei ao Mercado Central. O movimento está tranquilo, sem aquele trombar constante com as pessoas, em dia de sábado ou de domingo. A propósito, esse é um dos melhores mercados do Brasil e do mundo, considerando a qualidade dos seus produtos. E está a comemorar os seus 90 anos.

Comprei as minhas castanhas – do Pará, caju, noz e amêndoas – e ao sair resolvi tomar o ônibus 5102, que faz a linha UFMG-Bairro Santo Antônio, cujo ponto é na Avenida Augusto de Lima, logo ali próximo.

Faltavam 21 minutos para o ônibus chegar. Então resolvi esperar. Enquanto esperava observei um homem negro, quase obeso, com a perna esquerda mecânica, apoiado em duas muletas.

Não contive o ímpeto e me aproximei dele para puxar um dedo de prosa, como se diz. Dei “bom dia” e ele me olhou meio ressabiado e então eu disse que, por curiosidade, gostaria de fazer algumas perguntas.

- Posso? – Eu disse e percebi, ele se desarmou.

- Pode – Respondeu.

- Essa sua perna mecânica lhe dá condição de andar, incomoda ou não?

- Dá condição, sim – Ele respondeu, e emendou: - O problema é a minha mente.

- Como assim? – Indaguei.

E ele explicou:

- É que eu ainda não assimilei, não estou seguro. Por isso uso as muletas.

- Hum... E o que lhe aconteceu?

- Acidente de moto – ele disse.

- Putz!

- É o resultado de bebedeira. Agora, aguento as consequências e bola para frente – ele disse.

E pelo que disse, ainda não ganhou confiança de largar as muletas e andar com a perna mecânica, a que conseguiu comprar com toda dificuldade.

Perguntei quanto custou e ele disse:

- Oito mil. Tem outras bem melhores, de até 50 mil, muito melhor do que essa; mas o que fazer?

Por um átimo de tempo tive a ideia de aprofundar mais a nossa conversa e até pensei em sugerir a ele fazer uma campanha para adquirir uma perna mecânica de mais qualidade.

Mas não deu tempo, o ônibus aguardado por ele chegou. O homem se despediu e se foi. Não sem uma certa dificuldade para entrar no veículo, se atrapalhando com as duas muletas.

*Ledor do Diário de Minas

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