Créditos: Divulgação
10-12-2025 às 10h17
André Colombo*
A exposição “Entrega Efetuada”, em cartaz na Galeria Nívea Bracher em Juiz de Fora,
transcende a mera mostra de arte. É uma urgente intervenção sociopolítica, concebida
pelos artistas Mariana de Andrade e Rodrigo Dias, que ressoa como um grito
necessário. A experiência é visceral: ao mesmo tempo arrepiante e profundamente
emocionante, força o espectador a encarar uma realidade brutal. A mostra, marcada por
um sopro de criticidade e rigor formal, eleva o patamar da temporada de ocupação da
galeria, inaugurada por seu primeiro edital. Ela se contrapõe a um circuito cultural que
tem se inclinado perigosamente para o conservadorismo estético e o apelo comercial,
limitando o alcance da produção local. Rompendo com essa inércia, “Entrega Efetuada”
possui a relevância temática para figurar no circuito oficial de grandes centros como
Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo.
Se antes parecia que a dupla apenas bebia nas representações figurativas de Vik
Muniz, a potência conceitual desta mostra surpreende. O eixo conceitual é
magistralmente ancorado na potente metáfora da canção “A Carne”, imortalizada por
Elza Soares. Essa inspiração atinge seu ápice na instalação de grandes simulacros de
peças de carne, que ostentam etiquetas de identidade de pessoas invisibilizadas. O vazio
que toma o lugar das identificações faciais denuncia o processo de desumanização. O
impacto visual é um profundo e visceral desconforto. O gesto dos artistas é um ato de
conceitualismo engajado, que confronta o público ao fundir a “carne-alimento” com a
“carne-corpo humano” do entregador. A ausência de fotos nas etiquetas é o indicativo
mais eficaz da invisibilidade do trabalhador, reduzido a mero material consumível e
descartável.
A jornada de quatro instalações guia o visitante pela narrativa da exploração
algorítmica. “Tempos Modernos” estabelece a crítica inicial, conectando a servidão
industrial de Chaplin às bicicletas sudorentas e ensanguentadas sob a vigilância digital
das plataformas. Em seguida, a Instalação das Bolsas de Entregas transforma esses
objetos de esforço e urgência em ícones de sacrifício. A peça final, “Entrega Efetuada”,
atua como a amarração dramática do ciclo, simbolizando o esgotamento que se perpetua
para além da tela do aplicativo. Os rostos retratados nas caixas descartáveis, numa
estética que alia a perenidade da umidade condensada do vapor à impregnação
engordurada no papel, demonstram a impossibilidade de naturalizar essa realidade.
Ao exibir as obras no Mercado Municipal, Mariana de Andrade e Rodrigo Dias
revigoram um artivismo visceral. O trabalho se insere de forma crítica no centro da
dinâmica de consumo e logística da cidade, exigindo que o espectador confronte a
origem do conforto e da conveniência moderna. A arte, aqui, recusa o pedestal
decorativo e se transforma em um registro histórico sobre a dimensão sociorracial dessa
precarização. Portanto, “Entrega Efetuada” é uma exposição essencial, destacando-se
como uma das raras exceções que elevam o debate artístico local para o nível nacional.
É, de fato, um dos trabalhos mais importantes do circuito de arte de Juiz de Fora nos
últimos anos. É uma obra que exige ser vista, não apenas pela qualidade formal, mas
pela sua capacidade didática de expor, com coragem e lucidez, o custo humano e a
estrutura racista que se escondem por trás do simples clique no celular. A mostra
cumpre, assim, sua entrega mais importante: a da consciência crítica.
*André Colombo é Historiador, especialista em artes visuais e história da arte. Mestre em arte, cultura e
linguagens pela UFJF.






