René Descartes nos provocou amplas e férteis reflexões com o seu “Penso, logo existo”, o que será de nós quando desqualificarmos a nossa capacidade individual de pensar?
-“Pronto, o futuro chegou!” – foi frase ouvida durante a semana, quando se noticiou ter sido implantado o primeiro chip na cabeça de um ser humano. Mérito da empresa de Elon Musk.
O pioneirismo significa chip, conectado a 1.024 pequenos eletrodos implantados no cérebro humano, em área que onde ocorre a “intenção de movimento”, para permitir que pensamentos possam controlar o telefone ou computador. É, decerto, o primeiro passo para o futuro mais altamente tecnológico do que sequer somos capazes de sonhar ou imaginar,
Soa como ser algo capaz de fazer funcionar qualquer dispositivo apenas com o pensamento, sem força humana empregada em mouses, teclados, controles e botões.
Logo chegará o momento, portanto, em que já não ficaremos procurando os aparelhos de controle-remoto nos sofás e almoçadas. Mas, com tanta facilidade, não nos furtaremos a considerar que talvez possamos perder o nosso foco em pensar – em sentido mais amplo.
Ultimamente parece que estamos mais nos condicionando a aprender a usar o que poderíamos ver como “cola moderna”, que ferramentas de Inteligência Artificial são capazes de produzir. “Diz-me o que queres e farei para você”, parece dizer a inteligência de máquina, se quisermos produzir um estudo, trabalho de curso ou afim. Nesse caso, logo não teremos que pensar e os nossos neurônios descansarão sob sombra e água fresca, não precisando ler, estudar, devorar livros por lazer ou estudo e aprimoramento técnico, desaprenderemos a desenvolver textos, a articular pensamentos, pretensões, cartas de amor e requerimentos.
Se, no passado, o filósofo René Descartes nos provocou a amplas e férteis reflexões com o seu “Penso, logo existo”, o que será de nós quando desqualificarmos a nossa capacidade individual de pensar? Falamos em pensar no sentido de questionar, duvidar e contestar. Não cogitamos do pensar quando se manifesta sob a forma de fé cega e ilusão.
Pela lógica daquele pensamento, deixando de pensar, deixaremos de existir, de ser. Perderemos a nossa essência, a nossa verdade e o que nos define.
Se somos o que pensamos e agimos pelo que pensamos, se a preguiça nos domar deixaremos de ter capacidade de pensar criticamente, de resistir a abusos, de duvidar de mensagens manipuladoras, de perceber a real intenção de propagandas e propostas envolvidas em véus de ilusão, de cotejar propostas e valorizar a nossa razão para votar em qualquer candidato, de desconfiar de bondades e de lobos em pele de cordeiro. Corremos o risco de nem perceber quando estivermos caindo dos abismos…
Sob outro prisma, os avanços médicos e científicos serão maximizados. Quantos usos e dinâmicas não estariam sendo descortinados, a partir desse mesmo embrião? Chegaremos a usos, hoje, inimagináveis.
Poderíamos ter chips eletrônicos implantados, a partir dos quais poderíamos projetar digitação do que imaginássemos, sem precisar teclar ou falar, chegando, até mesmo, a aposentar os conhecidos computadores pessoais e telefones. Em caso de dúvida sobre isso, lembremo-nos de que já quase aposentamos os telefones fixos e, a par da imensurável quantidade de pequenos computadores e tablets com os quais convivemos, não podemos nos esquecer de que, em 1940, se imaginava que, nesta nossa era, os computadores diminuiriam de tamanho e poderiam chegar a pesar uma tonelada e meia – cada um! O que diria quem fez essa profecia, se visse do que hoje dispomos?
Mais do que isso, chegaríamos à nova geração de “bluetooth”, que permitisse inovadora conexão sem fio entre os chips de diferentes pessoas, para que pudessem interagir entre si, como se conversassem telepaticamente, podendo, inclusive, “fazer amor por telepatia” – como cantava Rita Lee – e reuniões virtuais ou usos outros, como campanhas políticas, disponibilização de aulas aos alunos, etc.
Entretanto, sejamos honestos, tudo isso poderá se tornar perigosa ferramenta em favor de opressores e ditadores, que poderiam destinar essa tecnologia para fins de controle e monitoramento da nossa individualidade, sejam ações ou (até) pensamentos.
De toda sorte, antes de mais nada, o propósito deste ensaio não é vaticinar situações, mas sim cotejar os avanços contemporâneos e úteis proposições para o futuro da humanidade com as imensas distrações que a própria tecnologia relacionada à internet nos propicia.
Como praticamente tudo o que existe, é a destinação humana que vai definir se algo é bom ou ruim, útil ou não, seguro ou perigoso. Se não fosse assim, os fabricantes de carros ou armas seriam responsabilizados por cada ferimento ou morte. As coisas não são as causas dos problemas, porquanto depende da sua integração com uma ação humana, mecânica e com qualidade culposa ou intencional, para produzir responsabilidade pelo resultado.
Sem nos alongar na questão, é crível que essa notícia nos leva a reflexões abrangentes, por seu caráter inovador, por aparentemente demarcar um novo momento na relação homem/máquina e, sim, certamente, em alguns de nós, provocar desconfiança e suspeitas relativas ao monitoramento da privacidade e das ações de cada ser humano, já que, aparente e supostamente, estaríamos, todos, à mercê de ser monitorados 24h e, até, controlados de modo mais tendencioso, sobre o que pensarmos, tenhamos tendência a realizar ou iniciemos a praticar.
Assim, essa notícia nos leva a um patamar de bons significados e de admitir que antigas utopias estejam se tornando realidade. Seguiremos pela rota que nos conduzirá a progresso maravilhoso ou cada vez mais perderemos as qualidades do que nos faz ser assim para nos tornar mais distraídos e escravizados por distrações, manipulações e “pão e circo”, retratos significativos das “desnecesselfies” da vida moderna.
A propósito, o termo “desnecesselfies” merece um parágrafo, porquanto o neologismo, de autoria desconhecida, revela uma foto de si mesmo, aparentemente desnecessária. Ouvimos de passagem e absorvemos o seu significado de estradas sem destino, para nossas questões e vazios existenciais. O neologismo decorre da mistura da palavra desnecessária, em língua portuguesa, com self, da língua inglesa. Curiosamente, como self tem por plural selves, o seu plural seria “desnecesselves”. Contudo, apesar disso, no título e acima usamos a grafia “desnecesselfies” por ser aquela que parece ser a difundida nas redes. Para isso, seguimos a tendência, para facilitar a comunicação.
É óbvio que a rede mundial de computadores, comumente chamada de internet, permite múltiplos usos, convenientes a cada um. A farta disponibilização de informações nos coloca o mundo à disposição. Basta teclar e achamos de tudo um pouco (ou muito). Percebemos, ainda, que as pessoas não querem ser só receptoras de informações. Querem falar, influir na opinião alheia e nos rumos políticos. Passamos a ter especialistas em praticamente tudo, o tempo todo.
Falamos e produzimos informações. Estas circulam com velocidade extraordinária e em quantidade cada vez maior. Mas será que muita informação disponível significa algo saudável? Estamos sendo soterrados com mais informação do que temos capacidade de processar. Não conseguimos carregar 100 livros nas mãos, assim como não somos capazes de guardar e processar tantas informações em nossas mentes. Não temos como interagir com 10.000 “amigos virtuais” e não sabemos de cor o nome de 10% deles. A nossa história nos fez ficar à vontade com pequenos agrupamentos. Não somos das multidões, que tendem a nos fazer vítimas de crises de pânico e depressão e doenças autoimunes.
Somos o que somos hoje, porque aprendemos a ser assim, acertando e errando, caminhando e cantando, tropeçando, caindo e nos levantando. Aprendemos a fazer cálculos e escrever. Desenvolvemos redação própria, pela articulação de ideias e teses e premissas e conclusões. Fomos testados por experiências boas e ruins e nos tornamos melhores com o passar do tempo, exatamente porque qualificamos a nossa integridade, a nossa personalidade, os nossos atributos e o nosso existir. Como humanos, aposentaríamos modelo e o trocaríamos pelo ócio que nos influenciam e por esse sistema que tende a se desinteressar pela nossa capacidade de pensar, substituindo-a, dentre outras coisas, pelo imediatismo das recompensas que nos viciam e momentos de deslumbramento com as curtidas ante as “desnecesselfies” e esse culto à imagem pessoal, trabalhada, produzida e narcisista, que ganha as redes e simboliza, talvez, o ponto de não retorno da nossa humanidade?
*Rogério Reis Devisate é Advogado/RJ. Membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da União Brasileira de Escritores e da Academia Fluminense de Letras. Presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU. Membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ. Defensor Público/RJ junto ao STF, STJ e TJ/RJ. Autor de vários artigos jurídicos e dos livros Grilagem das Terras e da Soberania, Diamantes no Sertão Garimpeiro e Grilos e Gafanhotos: Grilagem e Poder. Co-coordenador da obra Regularização Fundiária Experiências Regionais, publicada pelo Senado Federal.