Entre a biografia cultural do objeto e o objeto biográfico
Há um curioso dicionário de rimas. Na folha de rosto do exemplar pertencente ao Museu Mariano Procópio, uma assinatura a caneta logo chama atenção. O autor da assinatura é Correia de Almeida
Sérgio Augusto Vicente
01-03-2024 às 09h:35
A pesquisa histórica sempre nos reserva surpresas. Ainda bem. Lendo o livro de memórias autobiográficas do poeta Belmiro Braga, publicado em 1936, descobri que um pequeno e “velho exemplar” com que o poeta juizforano fora presenteado no início do século passado figurava entre os livros da Biblioteca do Museu Mariano Procópio. Publicada no século 19 e dotada de pequenas dimensões (14 x 10 x 2,5 cm), a obra se intitula “Dicionário de Rimas Luso-Brasileiro”, de autoria do português Eugenio de Castilho, e editada em Lisboa, pela C. S. Afra & Cia. Editores.
Essa publicação portuguesa circulou amplamente entre diversos escritores brasileiros. O autor, Eugênio de Castilho, nasceu em Lisboa em 1846 e faleceu em 1900. Atuou como escritor, poeta e amanuense da Biblioteca Pública de Lisboa. Aos vinte anos, ingressou na carreira literária, escrevendo o romance “Miragens da Felicidade”. Seu pai era o português Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875), o Visconde de Castilho, famoso latinista, poeta, prosador e escritor romântico que exerceu o cargo de Comissário Geral de Instrução Primária em Portugal, desenvolvendo o controvertido “método Castilho de leitura”, que, apesar de nunca ter sido adotado oficialmente, propagou-se por diversos lugares, inclusive no Brasil-Império. Foi ele também o autor do prefácio do “Dicionário de Rimas” publicado por seu filho.”
Na folha de rosto do exemplar pertencente ao Museu Mariano Procópio, uma assinatura a caneta logo chama atenção. O autor da assinatura é Correia de Almeida, um famoso padre-poeta satírico de Barbacena (MG), que, vivendo entre 1820 e 1905, deixou vasta produção literária em livros e na imprensa. Seus escritos alcançaram tanto os públicos leitores do Brasil quanto os de Portugal, onde teve suas obras apresentadas pelo próprio Visconde de Castilho, o pai do autor e prefaciador do dicionário. Outro registro a caneta, também encontrado na folha de rosto, informa que, posteriormente, o exemplar passou às mãos do poeta Belmiro Braga (1870-1937), que redigiu a seguinte mensagem de próprio punho: “Presente que me deixou o querido Padre Correia de Almeida ao morrer”.
Apesar de pertencerem a faixas etárias muito distintas, Belmiro e Padre Correia estabeleceram próximas relações e dialogavam, em alguma medida, com tradições literárias em comum. O primeiro contato de ambos data do final do século 19, quando Belmiro atuava como comerciante em um armazém na estação ferroviária de Cotegipe (MG), distrito de Juiz de Fora (MG). Além de trocarem livros e correspondências, Belmiro comentava no “Jornal do Comércio”, de Juiz de Fora, em 29 de novembro de 1903, sobre a produção do amigo: “[…] De outro grande amigo e grande mestre – o venerando padre Correia de Almeida – recebi também o seu último livro – “Rabugem Inaderente” – uma coleção de quadrinhas espontâneas, nas quais o Tolentino Brasileiro passa mais uma tunda nos nossos costumes. […] a lira do meigo velhinho de Barbacena não falta ainda nem uma corda e está afinadíssima, apesar dos seus oitenta e quatro anos. Estro espantoso, velhice fecunda”.
As redes de interlocução e sociabilidades dos escritores contribuíam para a ampliação de seus acervos bibliográficos, além das compras realizadas nas principais livrarias da capital do país, onde se mantinham antenados às novidades que chegavam ao ainda incipiente mercado editorial brasileiro. Foi assim que Belmiro Braga constituiu uma significativa biblioteca em sua casa, em Juiz de Fora. Em 1916, porém, por ocasião de sua mudança para o Rio de Janeiro, precisou vender parte desse acervo à Livraria Sampaio, de Juiz de Fora. Segundo o jornal “O Pharol”, de 13 de abril de 1916, o acervo vendido contava com mais de mil exemplares, muitos dos quais lidos e/ou folheados pelo menino e futuro escritor Murilo Mendes, como este declara em seu livro de memórias “A Idade do Serrote”: “[…] amigo de meu pai, tendo eu sete anos voluntariamente me ensina a rimar e metrificar, mais tarde me abre a caverna da sua biblioteca onde durante mil e uma tardes descubro Bocage, Antonio Nobre, Cesário Verde, Camilo, Fialho de Almeida, Eça de Queirós […]”.
Eis a pergunta que não quer calar: teria sido o dicionário de rimas também colocado à venda por Belmiro Braga, juntamente a outras centenas de obras?
É plausível supor que não. Devido ao seu valor afetivo, o exemplar parecia ocupar um lugar especial no acervo particular do poeta, integrando o conjunto de livros que o acompanhariam ainda por muitos anos. Em “Dias Idos e Vividos”, publicado em 1937, Belmiro Braga não se furtou a render homenagens ao padre-poeta barbacenense, reportando-se ao dicionário como uma espécie de símbolo/vestígio material dessa relação de amizade e de trocas literárias: “O Padre Correia de Almeida deixou-me em testamento, uma obra preciosa: – um dicionário de rimas velhíssimo, da primeira à última página todo acrescido de novas rimas por seu próprio punho. Almas boas como a desse querido amigo é que me fazem crer que o céu existe…”.
Não se sabe ainda “como”, mas, depois da morte de Belmiro, a “pequenina” publicação chegou às mãos de Arthur Tavares Machado, então funcionário do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, que a doou ao Museu Mariano Procópio no início da década de 1970, acompanhada de outros objetos e publicações do amigo do padre-poeta. A propósito, esse acervo veio a integrar, em 1972, a exposição "Centenário de Belmiro Braga", organizada pela então diretora da instituição, Geralda Armond, prima e sucessora de Alfredo Ferreira Lage.
O valor deste exemplar não se encerra em seu conteúdo. O objeto, estando repleto de valor simbólico e de marcas pessoais encontradas em suas folhas, contribui com a análise de alguns aspectos das vidas de seus antigos proprietários. Ao longo de sua trajetória, o “livro-objeto” percorreu múltiplos contextos, lugares e pessoas, desvelando usos, abusos e significados múltiplos em diversos momentos da história. Portanto, não seria forçoso reconhecer que o dicionário de rimas, sendo um “objeto biográfico” portador de uma “biografia cultural”, participou do processo de construção das “memórias de si” de seus antigos proprietários. Hoje, é um documento-monumento preservado, pesquisado e comunicado aos públicos através de uma pesquisa de doutoramento em História acerca da vida e da obra do "trovador de Vargem Grande", também conhecido como um dos 12 fundadores da Academia Mineira de Letras em Juiz de Fora, em 1909.
Analisar a trajetória e a produção de um literato requer, antes de tudo, sensibilidade e olhares atentos aos vestígios, fios e rastros de uma vida repleta de lacunas, mas atravessada por outras vidas que se cruzam, transformando em arquipélago o que antes da pesquisa imaginávamos ser apenas uma ilha.
*Professor de História e historiador. Graduado, mestre e doutorando em História pelo PPGHIS/UFJF. Atualmente, trabalha no Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora
3 comentários
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Comentário
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Fiquei encantada com este texto tão bem escrito, uma viagem a um tempo em que os livros eram lidos no ambiente silencioso e respeitoso, quando a imaginação construía imagens (já hoje estamos estamos vítimas de uma ditadura de imagens das telas da TV, monitores e celulares). A comunicação entre esses fantásticos escritores/leitores, registrada nos livros - e bem colocada no texto do Sérgio - traz-nos essas "tremeluzentes estrelas" a encantar as nossas noites sem céu.
Super parabéns! Belo exemplo de conexão entre sujeito, objeto, memória e história.
Parabéns!