Em uma única hora, três vozes discordantes
“A Cabeça de Cachorro”, é uma das áreas mais isoladas do Brasil. É cheia de histórias e controvérsias. É rica em gás natural, as guerrilhas colombianas estariam sempre tentando circular por ali
0-09-2023 às 14:30h.
Manoel Hygino dos Santos*
Selecionei dois autores mineiros para o comentário de hoje. Aylê-Salassié Filgueiras Quintão, nascido em Piruíba, no mais longínquo Leste do Estado. Jornalista e professor, Doutor em História Cultural, ex-integrante dos quadros de grandes veículos de comunicação do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Correspondente em Londres, percorreu vários países, exercendo a cátedra universitária na UNB e na Católica.
Igualmente de grande prestígio e qualidade literária, Anderson Braga Horta, advogado, nascido na Zona da Mata, em Carangola, filho de magistrado, pai e mãe poetas, pertencente à Associação Nacional de Escritores e à Academia de Letras do Brasil, entre outras instituições culturais, grande orador, um dos maiores poetas do Brasil atual e detentor do Prêmio Jabuti.
Diz mais: Pois nesta hora, que vem do quatriênio governamental iniciado em 2018, os dois excelentes brasileiros comentam sobre reduzir ao mínimo possível a polarização política remanescente. Tudo muito duvidoso. Aylê, conhecedor da Amazônia, julga muito remoto ensinar a língua indígena - o nheengatu, à maioria dos povos que vivem às margens dos rios. Adverte que só no município de São Gabriel, que separa o Brasil da Colômbia e Venezuela, falam-se 25 idiomas das famílias aruak, tukano e maku.
“A Cabeça de Cachorro”, como identificada a região, é uma das áreas mais isoladas do Brasil. É cheia de histórias e controvérsias. É rica em gás natural, as guerrilhas colombianas estariam sempre tentando circular por ali, religiosos de diferentes denominações e geólogos estrangeiros circulam por lá chegou-se a cogitar da ideia de um território autônomo e exclusivo. Aliás, até Che Guevara imaginou começar uma insurreição no continente por ali.
“Estamos só de passagem”, dizem os invasores, quando interceptados no alto rio Negro atravessando a fronteira para o Brasil, vindos da Colômbia ou da Venezuela. A ordem dos militares é para a interceptação: “Aqui é o fim da linha”. A unidade militar do Comando de Fronteira, até há pouco tempo, era única presença efetiva do Governo Federal na região: Funasa, Receita, Ibama, Polícia Federal, Ministério do Trabalho, estão instalados por lá, às vezes, em uma única sala, a maioria do tempo fechada.
O SONHO RESISTE
Em Separata da Revista da Academia de Letras do Brasil, seu editor Flávio R. Kothe aconselha a leitura de Poemas Raciais, de Anderson, participante da redação da Constituição de 1988, que, como Martin Luther King, tem um sonho: “Não me ofereçam coroa de rei/ nem coroas de louros, / Eu tenho um sonho. “O homem que tem um sonho/ é maior do que o rei, / é mais forte que o herói, /é mais belo que o poeta”. Acrescenta:
“Pois tenho um sonho.
Acreditem os adoradores do Lucro,
os beneficiários da Força,
os idiotas da Contenção do Verbo,
os antirromânticos por falta de inspiração
ou por conveniência,
os solitários do Medo,
os bandoleiros do Vício:
Eu tenho um sonho!
E no meu sonho a Terra é azul e verde
E o homem tem a cor de sua alma.
Dentro dessa linha de raciocínio, consoante o tempo denso e tenso que vivemos, a socióloga carioca, Flávia de Queiroz Lima, lança o seu “Laços e Avessos”, pela Pangeia Editora. À margem, em alinhavo com o mundo, ela desmascara os dias turvos que nos cercam, no oito milhões e 500 mil quilômetros quadrados de território, em que muito se canta e se proclama, mas 33 milhões de pessoas sobrevivem enfrentando o espectro da fome e do desamparo. Há um “abismo”; enquanto enaltecemos a Independência:
“Um grande vazio ronca
na barriga,
na descrença.
A longa fila do osso,
prolongando a vida avessa,
deixa à míngua,
colhe xepa
da fartura que transborda
- refugo jogado fora
esbanjando indiferença.
A prateleira vazia
só promete a noite insone.
No desamparo incessante
A prole em volta, que chora,
Compartilha o estreito espaço,
mas preenche o desalento
quando, aflita, se amontoa,
se protege, se consola.
Só a ironia atravessa
esse abismo onde se apartam
as digitais da penúria
e as sobras desperdiçadas.
Feito um deboche que humilha,
a fome, exposta ao descaso,
desmascara a violência
obscena,
escancarada”.
*Da Academia Mineira de Letras e da Associação Nacional dos Escritores