
Briga de marido e mulher - créditos: divulgação
02-03-2025 às 08h08
Brunello Stancioli (*)
Os provérbios refletem o pensamento da sociedade. Eles revelam normas e valores que estão enraizados na cultura. Muitas vezes, esses ditados perpetuam ideologias ultrapassadas. O provérbio “briga de marido e mulher não se mete a colher” é um claro exemplo da visão machista que ainda permeia alguns setores da sociedade. Ele reflete a ideia de que, em situações de conflito doméstico, a intervenção é indesejável. Essa mentalidade precisa ser questionada e reformulada.
Para entender essa crítica, é preciso analisar a evolução das esferas pública e privada ao longo da história. Na antiguidade, a divisão entre o privado e o público era bem definida. O conceito de privatum, que se referia ao espaço privado e à propriedade, era controlado pelo pater famílias, enquanto a res pública englobava o que pertencia à comunidade. Nesse contexto, as normas eram fundamentadas na propriedade, e a mulher era vista como parte da propriedade do homem, sem autonomia.
Com o advento do feudalismo, essa divisão começou a se diluir. O espaço público se tornou escasso; as relações eram fundamentadas em laços de feudos e de senhores. A Igreja, por sua vez, ocupou um papel central na organização social. A burocracia da Igreja realizava registros que eram fundamentais para a vida da comunidade, como o batismo, o casamento e o registro de bens. No entanto, surgiu um ambiente em que as esferas de influência estavam cada vez mais interligadas, dificultando a compreensão do que era privado ou público.
O Estado Liberal do século XVII ao XIX promoveu um reexame desses conceitos. A lógica do “laissez faire, laissez passer” originava-se da ideia de que a economia deveria ser livre de intervenções estatais. A crença era que os mercados naturais e as interações sociais, se deixados em paz, levariam ao progresso. Nesse contexto, a esfera pública começou a se reorganizar, e a proteção da propriedade passou a ser um foco das leis. Contudo, os direitos dos indivíduos ainda não eram plenamente considerados, especialmente no que tange à proteção das mulheres e das crianças.
Após a Segunda Guerra Mundial, a perspectiva sobre a privacidade começou a mudar. A prioridade deixou de ser apenas o controle de informações para se focar também na proteção do ser humano. O que era uma questão privada passou a ser uma questão pública em muitas situações. Por exemplo, a violência doméstica que antes muitas vezes era vista como um assunto de família agora é reconhecida como um crime, requerendo a atenção e a intervenção da sociedade. Casos de abuso e agressões intrafamiliares não podem mais ser silenciados sob a torpe arguição da privacidade.
Essa mudança também ocorreu em casos antes considerados públicos que passaram a ser vistos como privados. Questões como a orientação sexual ou o uso privado de drogas, por exemplo, foram gradual e socialmente redimensionadas. O que antes era objeto de normas públicas agora é tratado com uma abordagem mais individualizada, respeitando os direitos de cada um de se expressar e viver de acordo com sua escolha. A discussão sobre a privacidade agora envolve o equilíbrio entre a segurança pública e os direitos individuais.
Os direitos das crianças e adolescentes estão amplamente garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Este documento fundamental estabelece um arsenal de direitos, que vão desde a educação até a proteção contra a violência. A privacidade é um desses direitos, especialmente no que diz respeito ao corpo e à integridade física. Um exemplo emblemático é o caso de adolescentes vítimas de abuso sexual, cuja proteção e privacidade são fundamentais para garantir sua recuperação e dignidade.
Dentro desse contexto, a Lei Maria da Penha surge como um marco na proteção das mulheres contra a violência. Promulgada em 2006, ela tem como objetivo coibir e punir a violência doméstica de forma mais rigorosa. A lei cria mecanismos para proteger as mulheres, permitindo medidas de afastamento do agressor e a criação de delegacias especiais.
A simbologia da Lei Maria da Penha é muito forte; ela representa a luta das mulheres por seus direitos e a conquista de um espaço seguro. Casos como o de Jean Pierre Martins, que foi preso após agredir sua ex-companheira, e de Thiago Arcanjo, famoso por sua atuação no cenário artístico, demonstram a necessidade da lei ao punir figuras públicas. Ambos se tornaram símbolos importantes na luta contra a impunidade e no reconhecimento de que a violência contra a mulher não pode ser tolerada.
Concluímos que, em certas situações, a intervenção é não só necessária, mas obrigatória. “Private faces in public places is much better than public faces in private spaces” (Judith Butler). A privacidade, embora ainda seja um direito fundamental, não deve ser usada como argumento para encobrir comportamentos inadequados ou abusivos. Quando há violência ou assédio, o dever é acionar as autoridades. A omissão em situações de abuso é inaceitável.
Assim, o vizinho que se intromete pode ser visto como o agente da cidadania. Cada um de nós deve assumir a responsabilidade de agir em prol do bem-estar do outro. Intervir, denunciar e apoiar as vítimas não é apenas uma escolha moral, mas uma obrigação coletiva. Ao enfrentar a injustiça, contribuímos para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
(*) Brunello Stancioli é professor na Faculdade de Direito da UFMG e coordenador do Grupo Persona