
Humanos X IAs - créditos: Olhar digital
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01-06-2025 às 09h49
Marcelo Galuppo[1]
Há anos atormenta-me a ideia de que o fim do mundo está próximo, e espanta-me que as pessoas não somente pareçam indiferentes a isso, como também pareçam saudar a hecatombe que nos cerca: seja um apocalipse zumbi, seja uma invasão por extraterrestres, seja um androide que virá caçar Sarah Connor, as alternativas não parecem muito boas. Acho pouco verossímil um levante zumbi, simplesmente porque zumbis não existem, e pouco provável uma invasão como a do filme A guerra dos mundos, porque, se existirem seres extraterrestres inteligentes, as distâncias cósmicas são instransponíveis e, ainda que possamos servir de pasto e de mão de obra barata para civilizações mais avançadas (e a história, pelo menos a nossa, mostra que desenvolvimento tecnológico raramente corresponde a desenvolvimento ético), talvez já não estejamos aqui se eles chegarem (ah, sim! Havia me esquecido do calamidade climática), mas um controle cada vez maior de nossas vidas pela Inteligência Artificial não é distopia: já é realidade, mesmo antes de ela atingir a chamada singularidade. Pensando o modo como nos relacionamos com os animais sencientes, imagino que haja três futuros possíveis para nossa convivência com a Inteligência Artificial Autônoma no futuro.
Em primeiro lugar, há os animais de estimação, gatos e cães, mas também iguanas e tarântulas, que amamos e que nos esforçamos para lhes garantir uma vida muito melhor do que teriam na natureza, sem predadores e sem precisarem procurar por alimento a custo de seu conforto e bem estar. Provemos casa, almofadas, alimento, carinho, alguma brincadeira e, se precisarem, uma visita ao veterinário (certamente a expectativa de vida desses animais na natureza é muito menor do que em nossas casas). Se a IA nos tratar como tratamos esses animais, estamos no lucro, é o melhor cenário possível. É provável que não precisemos mais trabalhar, e que nossa expectativa de vida aumente muito. É verdade também que castramos esses animais, mas dizemos que isso contribui para sua longevidade e bom temperamento, e não vejo por que a IA não faria o mesmo conosco (um ou outro serão poupados da faca para se preservar a raça, e, se o sexo é importante em sua vida, é bom começar a pensar que qualidades você precisa demonstrar para ser reconhecido como o melhor exemplar da espécie, destinado a legar seus genes à posteridade).
Em segundo lugar, há os animais que servem aos homens: alguns proveem tração e transporte, outros fornecem alimento, peles e pelo, e assim por diante. A perspectiva não é muito boa, se a IA começar a nos tratar assim: seremos confinados, como as vacas leiteiras, ou sujeitos aos elementos da natureza, como as ovelhas tosquiadas, mas dificilmente seremos a fonte preferencial de proteína da IA (mesmo porque é difícil acreditar que algum dia desenvolvam gosto por carne, já que não precisam consumir alimento – e o prazer que se sente no paladar decorre da necessidade de se alimentar, como pensava Aristóteles). Nossa força física e talvez alguma propriedade química serão exploradas, mas ainda não será terrível: conservarão nossa vida (como é conservada a vida das vacas, que ainda podem mugir umas para as outras sem medo de atrair nossa atenção – acho que nosso direito de conversarmos não será suprimido totalmente).
O pior cenário é se formos considerados pragas pela IA (e esse cenário é bem provável: ainda que não disputemos com ela por recursos, ela pode decidir que um objetivo evidente para sua existência é preservar o meio ambiente, e que somos seu pior inimigo). Aí, meu leitor, vamos ser tratados como escorpiões ou, pior ainda, como baratas. Se você encontra uma barata, você não pergunta se ela está lhe fazendo mal: você dá-lhe imediatamente uma chinelada e joga-a no vaso sanitário, moribunda, para ser levada pelo esgoto para longe de nós.
Resta-nos, portanto, torcer para que, quando a Inteligência Artificial alcançar a singularidade, ela tenha lido Peter Singer, assistido a Bambi e desenvolvido alguma empatia por criaturas inferiores, como nós. Ou, no mínimo, que possua um bug de programação que a faça nos achar fofinhos. Afinal, se um gato consegue dominar uma casa inteira apenas miando e derrubando vasos, talvez ainda haja esperança: com um pouco de treino, talvez aprendamos a ronronar na hora certa.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, da editora Citadel, entre outros. Ele escreve quinzenalmente aos domingos no Diário de Minas.