
Débora Rodrigues dos Santos pichou a Estátua da Justiça durante os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. CRÉDITOS: Reprodução
Getting your Trinity Audio player ready...
|
14-04-2025 às 13h00
Marcos de Noronha*
Isso não é novidade: diariamente somos convencidos da qualidade de produtos e pessoas por meio de associações simbólicas. Um modelo sorridente, por exemplo, pode transmitir a ideia de que um produto trará felicidade.
No mundo atual, dominado por algoritmos, quase tudo é avaliado, ranqueado e comentado — decisões são tomadas com base em pontuações, e vivemos sob vigilância constante, com imagens capturadas a todo momento e usadas conforme o interesse.
Somos naturalmente atraídos por aquilo que nos gera empatia e prazer, aquilo que se apresenta como extensão de nós mesmos e dos nossos valores. Em uma democracia, a liberdade é condição essencial, sendo inclusive alvo direto de regimes autoritários. Os valores morais variam com o tempo e a cultura, mas certos traços persistem: a distinção entre certo e errado visa garantir harmonia social e proteger os mais vulneráveis. Quando há acesso à informação, a sociedade tende a reconhecer e seguir esses valores. Contudo, se um grupo tenta impor outra lógica, precisa recorrer à manipulação — substituindo a liberdade pelo medo e a verdade pela narrativa.
No Brasil, operações como a Lava Jato revelaram esquemas profundos de corrupção, envolvendo políticos e empresários. Naturalmente, a população apoiou o combate a esse mal e a renovação da classe política. No entanto, os envolvidos reagiram com brutalidade. Incapazes de apagar os fatos, lançaram campanhas para desmoralizar os protagonistas das investigações, criando narrativas negativas para desacreditá-los. A estratégia foi clara: interromper o debate e estigmatizar qualquer um que defendesse um ponto de vista diferente.
O ápice dessa inversão foi alcançado quando o governo, em conluio com setores do Judiciário, classificou cidadãos protestando contra a corrupção como terroristas, sugerindo que estariam tentando aplicar um golpe de Estado. Em meu livro, ainda no prelo, “Polarização: Sintoma de Doença Social” escrevi:
“Num verdadeiro contraste com o senso comum, este mesmo governo, para justificar o assassinato de pessoas, dentre elas mulheres, crianças e bebês em Israel pelo Hamas, ao invés de terrorismo, como apenas uma luta legítima pela Palestina”.
Ao assumir o Hamas como legítimo representante da causa palestina, o governo associou-se a financiadores como Irã, Catar e Turquia — países que, segundo diversas fontes, estão por trás dos ataques a Israel. Como os atos terroristas não podiam ser negados, optou-se por justificá-los com estatísticas de guerra. Militantes da esquerda apoiaram os militantes da Faixa de Gaza, assim como foram complacentes com os excessos do STF e do Executivo em relação aos manifestantes brasileiros. Durante as eleições de 2022, o STF agiu com parcialidade, reprimindo quem chamava Lula de ladrão, mas ignorando os que tachavam Bolsonaro de genocida. O velho ditado “dois pesos, duas medidas” se concretizou — moralmente condenável, mas politicamente conveniente.
Campanhas contrárias à anistia dos presos do 8 de janeiro revelam, em muitos casos, ingenuidade ou insensibilidade. Muitos repetem slogans como “Ditadura nunca mais”, sem considerar a inocência de muitos detidos ou o fato de que muitos protestavam pacificamente. A criminalização do todo pelo erro de alguns é uma prática comum em regimes autoritários. Mesmo pessoas bem-intencionadas acabam, por ignorância ou medo, colaborando com a tirania. A sociedade tem presenciado a substituição da gentileza por agressividade — a grosseria passa a ocupar o espaço do convívio harmonioso. A gentileza, valor universal, estimula a sociabilidade, enquanto a opressão gera medo e afastamento. A mídia tradicional, em conluio com o poder, perdeu credibilidade. As redes sociais, espaço inicialmente livre, tornaram-se alvo dos que desejam silenciar opiniões divergentes. Muitos ainda acreditam no que é veiculado por grandes emissoras, sem perceberem o quanto essas narrativas são construídas para confundir.
Ficamos sem saber quem são os heróis e quem são os vilões. Já me peguei torcendo por personagens tidos como fora da lei em séries como “La Casa de Papel”, “Breaking Bad” e “Lupin”, ou em clássicos como “Crime e Castigo” e “Robin Hood”. Mesmo mantendo meu senso de justiça, me vi levado pelas dores dos protagonistas. O filme “Ainda Estou Aqui” retrata os abusos da Ditadura Militar. Ao assisti-lo, me lembrei da dor das famílias dos manifestantes presos após o 8 de janeiro. O regime militar, que justificava seus crimes com a ameaça do comunismo, cometeu atrocidades. No entanto, hoje, vivemos algo semelhante, com uma ditadura da toga, mascarada por discursos democráticos. O filme é excelente, com atuações marcantes — mas me inquieta o silêncio daqueles que o exaltam quanto aos abusos do Judiciário atual. Ativistas de direita foram incapazes de elogiar o filme, pela postura de seus integrantes e relação com Lula. Por outro lado, os que incansavelmente cobravam em postagens “quem matou Marielle Franco?”, ao tentarem associar à Bolsonaro, encerraram em silêncio o deslise, quando foram descobertos os assassinos. Quando o mandante do crime foi solto, nenhum alarde, mesmo que, se compararmos o deputado Chiquinho Brazão, chegou a ficar detido cerca apenas da metade do tempo, por exemplo, que ficou a patriota Débora Santos, que recentemente foi para prisão domiciliar.
O povo sabe que os atos de 8 de janeiro não foram um golpe popular. Sabe também que os protestos foram, em grande parte, pacíficos. Imagens, apesar do sigilo absurdo imposto pelo STF, vazaram e mostraram baderneiros se passando por patriotas, com ajuda de funcionários do governo. Também revelaram manifestantes limpando os cacos de vidro da fachada e pedindo ordem. A opressão, ao invés de conter, alimentou o sentimento de injustiça. Enquanto isso, réus primários, idosos, mães de família permanecem presos, sem acusações formais, sem acesso à defesa plena. Um deles, mesmo doente, teve atendimento médico negado até a morte. Que tipo de justiça é essa? Qual valor está sendo defendido?
Gilmar Mendes, por exemplo, já mandou soltar traficante com 200 kg de cocaína por ser réu primário, mas hoje considera absurda a anistia para manifestantes. Ele mesmo já afirmou, no passado, que anistia é um ato político e, portanto, fora da alçada do STF. A incoerência é evidente. O jornal O Globo recentemente noticiou que o PL atingiu 257 assinaturas para pedir urgência na votação da anistia. Milhares de brasileiros, em manifestações legítimas, mostraram apoio a essa causa — enquanto eventos promovidos por partidos da esquerda foram um fracasso de público. Casos como o da cabeleireira que pichou uma estátua com batom e recebeu 14 anos de prisão são simbólicos. Ela não agiu com violência, não entrou nos palácios, mas foi punida de forma exemplar — usada como bode expiatório para intimidar outros. A esquerda, antes defensora dos direitos humanos, hoje aplaude esse tipo de sentença.
Enquanto isso, a jornalista Natuza Nery, desmontada em suas falas por Fernando Gabeira, repete a narrativa de que os manifestantes foram massa de manobra para um golpe. Essa tese não se sustenta diante das evidências. É mais uma narrativa construída para sustentar o poder e calar vozes dissidentes. A simbologia do batom e do fuzil se encontra aqui: o protesto pacífico contra o aparato opressor. Da mesma forma, o crisântemo e a espada — como no livro de Ruth Benedict — representam os extremos de uma sociedade em conflito. A autora, ao estudar os japoneses durante a Segunda Guerra, revelou um povo dividido entre delicadeza e violência, honra e brutalidade. Essa dualidade também se expressa no Brasil de hoje.
Nosso problema não é apenas político, mas moral. Falta-nos vergonha. Falta-nos senso coletivo. Enquanto os valores forem distorcidos em nome de causas pessoais ou ideológicas, continuaremos reféns da manipulação e da injustiça. Conhecer os mecanismos mentais e sociais é o caminho para resistirmos. Minhas aulas e publicações têm esse objetivo: promover saúde e lucidez para escapar das amarras sedutoras das narrativas fabricadas. Hoje, 40 anos após a Lei da Anistia, o Brasil enfrenta uma nova encruzilhada. Aqueles que antes lutaram por liberdade agora silenciam diante de novos abusos. É hora de olhar para a história com honestidade, coragem e compromisso com a verdade.
* Marcos de Noronha é Psiquiatra Titulado pela Associação Brasileira de Psiquiatria e Conselho Federal de Medicina. Psicoterapeuta e Psicodramatista reconhecido pela Federação Brasileira de Psicodrama. Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural. Membro da Associação Mundial de Psiquiatria Cultural. Associado da Seção de Psiquiatria Transcultural da Associação Mundial de Psiquiatria. Membro do Grupo Latino Americano de Estudos Transculturais (GLADET).
Com formação em diversas técnicas psicoterápicas dedicou parte de seus estudos às disciplinas que fazem fronteiras com a psiquiatria, dentre elas a sociologia e etnologia. Um dos fundadores da Associação Brasileira de Psiquiatria Cultural e da Mundial nesta modalidade. Escreveu artigos pioneiros sobre o tema nos principais periódicos científicos nacionais, além de contribuir com publicações de livros e de ter publicado os livros Terapia Social que expõem de forma intimista sua trajetória e técnica, o livro O Cérebro e as Emoções, fazendo uma leitura atual sobre o tema e recorrendo às práticas ritualísticas para uma analogia sobre os bastidores das psicoterapias e agora, no prelo, Polarização – Sintoma de Uma Doença Social, no prelo. Coordena em Florianópolis seus grupos de Terapia Social tanto no setor público como privado e defende a técnica do trabalho em grupo como eficaz e mais abrangente.