Em Busca de uma Filosofia. Ocorre que o território latino-americano apresenta um panorama singular quando se trata da filosofia subjacente ao seu direito tributário.
28-11-2024 às 09h:43
Raphael Silva Rodrigues*
A relação entre o cidadão e o Estado, em qualquer canto do mundo, é permeada por um contrato social tácito: a contrapartida da proteção, dos serviços públicos e da garantia da ordem social se dá através do pagamento de tributos. No entanto, essa relação, aparentemente simples em sua essência, revela-se complexa e multifacetada na prática, especialmente em contextos marcados por desigualdades sociais profundas e por um histórico de desconfiança em relação à gestão pública.
O pagamento de tributos transcende a mera obrigação legal e se apresenta como um dever cívico fundamental . É por meio da arrecadação tributária que o Estado pode financiar políticas públicas essenciais para o desenvolvimento social e econômico, como saúde, previdência, educação, segurança e infraestrutura.
O ato de pagar tributos, portanto, assume um caráter de corresponsabilidade social, em que cada cidadão contribui, na medida de sua capacidade, para a construção de uma sociedade mais justa e próspera.
Ocorre que o território latino-americano apresenta um panorama singular quando se trata da filosofia subjacente ao seu direito tributário. Ao longo da história, a relação entre o Estado e o cidadão nesta região foi marcada por um intrincado jogo de forças, ora impulsionado por ideais de justiça social e desenvolvimento, ora lastrado por um passado de desigualdades e exploração. Desvendar a filosofia tributária latino-americana implica, portanto, investigar não apenas os aspectos normativos, mas também a complexa teia social, política e econômica que lhe serve de alicerce.
Um dos pilares que sustentam a estrutura tributária da região é o ideal de justiça social. A busca por uma sociedade mais justa e igualitária, anseio historicamente presente nos movimentos sociais e políticos latino-americanos, ecoa na forma como se concebe a tributação. A ideia de que aqueles com maior capacidade econômica devem contribuir proporcionalmente mais para o bem comum permeia a construção de sistemas tributários progressivos, com foco na arrecadação de impostos sobre renda e patrimônio.
Entretanto, este ideal se depara com a realidade da desigualdade social. A América Latina figura entre as regiões mais desiguais do mundo, e tal disparidade se reflete em um sistema tributário muitas vezes ineficiente em sua busca pela justiça social. A concentração de renda e a dificuldade na implementação de mecanismos eficazes de cobrança de impostos sobre grandes fortunas acabam por perpetuar um ciclo vicioso de desigualdade.
Paralelamente ao anseio por justiça social, observa-se uma forte presença do Estado como agente indutor do desenvolvimento econômico. A crença na capacidade estatal de promover o crescimento econômico e a industrialização, particularmente forte após a Segunda Guerra Mundial, se traduziu em uma série de políticas públicas que utilizavam a tributação como ferramenta de incentivo a setores estratégicos. A concessão de isenções fiscais, a criação de regimes tributários especiais e a utilização de empresas estatais como motores da economia marcaram um período importante na história da região.
Contudo, a excessiva intervenção estatal e a falta de transparência em diversos países latino-americanos acabaram por gerar um clima de desconfiança em relação ao Estado e à gestão dos recursos públicos. A corrupção, presente em diferentes graus e momentos históricos, corroeu a legitimidade da cobrança de impostos, levando muitos cidadãos a questionarem a finalidade e a destinação dos recursos arrecadados.
Nesse contexto, emerge a importância da construção de uma cultura tributária sólida, baseada em princípios de transparência, accountability e participação popular. A conscientização sobre a importância dos tributos para o financiamento de serviços públicos essenciais, como saúde, educação e segurança, se torna fundamental para fortalecer o pacto social e garantir a legitimidade do sistema tributário.
A busca por um modelo tributário mais justo e eficiente na América Latina passa por um processo constante de reforma e aprimoramento. É necessário superar os desafios impostos pela desigualdade social, pela fragilidade institucional e pela histórica desconfiança em relação ao Estado. A construção de um sistema tributário que seja, ao mesmo tempo, socialmente justo, economicamente eficiente e moralmente legítimo é um desafio complexo, mas essencial para o desenvolvimento sustentável e para a consolidação da democracia na região.
A filosofia do direito tributário na América Latina é, portanto, um campo em constante construção, em que ideais de justiça social se confrontam com a realidade da desigualdade, e a busca por desenvolvimento se mescla à necessidade de fortalecer a confiança no Estado e garantir a participação cidadã na gestão dos recursos públicos.
*Raphael Silva Rodrigues: Doutor e Mestre em Direito (UFMG), com pesquisa Pós-doutoral pela Universitat de Barcelona, na Espanha. Especialista em Direito Tributário e Financeiro (PUC/MG). Professor do PPGA/Unihorizontes. Professor de cursos de Graduação e de Especialização (Unihorizontes e PUC/MG). Advogado e Consultor tributário.