
Ainda estamos aqui, premiado filme brasileiro de 2024 - créditos: Catraca livre
02-03-2025 às 08h28
Júlia Guimarães e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (*)
O ano de 2025 começou com importantes vitórias para o cinema brasileiro. Em consagração inédita, Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro como melhor atriz por sua atuação no filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles. Além disso, o longa foi indicado a três categorias do Oscar: Melhor Atriz, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Filme. A última categoria é um marco paradigmático e sem precedentes para o cinema nacional, reafirmando a qualidade e a potência das produções brasileiras.
Glauber Rocha (1965), em Manifesto que lançou as bases do Cinema Novo, problematizou em 1965 a existência de fronteiras intransponíveis entre o norte e o sul do globo, visto que o que se exportava, bem como o que interessava em termos cinematográficos, seria apenas a presença de muitos pecados no lado de baixo do Equador, onde se localizaria um país meramente exótico, carnavalesco e miserável.
Teríamos rompido as fronteiras do norte global ao fazer que sejamos compreendidos sem exotismo, revelando, ao invés disso, as nossas verdadeiras misérias vivenciadas ao longo de uma sucessão de golpes de Estado?
Independentemente das opiniões sobre o belo longa-metragem, é inegável a comoção social promovida em torno da obra, evidenciada pela intensa mobilização nas redes sociais e pelo recorde de público alcançado. Esse fenômeno foi celebrado por críticos e pela indústria cinematográfica como um marco de uma espécie de “renascimento do cinema nacional” após um período de desmonte cultural promovido pelo governo anterior (vide extinção do Ministério da Cultura, ameaças constantes de desestruturação da Ancine, dentre outros acenos ao obscurantismo extremista).
Para além do impacto cultural, os desdobramentos desse acontecimento podem ser visualizados também na esfera jurídica, sendo este ensaio dedicado a explorar as manifestações e as menções institucionais relacionadas a esse episódio.
Há quem ainda veja o direito como um sistema ilhado e imune às interferências sociais como modo de garantir a tão almejada “segurança jurídica”. Ocorre que o direito, sobretudo no que diz respeito ao seu centro gravitacional, as normas jurídicas, é um fenômeno interpretativo, estando, portanto, sujeito a implicações histórico-culturais.
Sendo assim, é um sistema que sofre interferências, por exemplo, da sociedade, economia, cultura, política, dentre outros. Ele está, o que se compreende a partir do marco de uma Teoria Crítica (Cattoni de Oliveira, 2023) , aberto ao por vir de lutas pelos sentidos a serem atribuídos pelos sujeitos que são autores-destinatários – permitindo que cada geração se reconheça permanentemente no direito posto como autora e destinatária.
Por falar em geração, o que caberia a nós?
Com uma pergunta similar a esta, Marcelo Rubens Paiva inicia o livro, que serviu como base para o filme, Ainda Estou Aqui: Onde é aqui?
Marcelo, filho de Eunice e Rubens Paiva, narra a história de uma família atravessada pela violência política dos anos ditatoriais. Tal enredo, segundo o autor, só foi possível de ser escrito após os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade instituída no ano de 2012, que, para além de esclarecer o contexto de morte e desaparecimento do político Rubens Paiva, lançou luz sobre diversos acontecimentos do período e, fundamentalmente, sobre o caráter generalizado e sistemático das violências perpetradas pelo Estado brasileiro.
A família Paiva é uma entre tantas. Entre várias. Todavia, Eunice Paiva, em cena e fora dela, foi quem, neste momento, chamou a nós e as instituições brasileiras para o enfrentamento deste passado. Olhamos para o que o olhar de Eunice busca.
A primeira repercussão significativa no campo do Direito veio por meio da edição da Resolução nº 601, de 13 de dezembro de 2024 (data que marca 56 anos da edição do AI-5), do Conselho Nacional de Justiça, que prevê a necessidade de retificação das certidões de óbito (uma das grandes lutas de Eunice) de todos os mortos e desaparecidos vítimas da ditadura para que se conste como causa morte: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”. Na sessão de aprovação da Resolução, o Ministro Luís Roberto Barroso relembrou Rubens Paiva e apontou que “embora tardia, essa medida é essencial para promover a reparação histórica e enfrentar a impunidade”. Além disso, após a edição da normativa, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, através de sua conta na rede social Instagram, divulgou a Resolução por meio de imagem cujo pano de fundo foi o cartaz de divulgação de Ainda Estou Aqui.
No dia 23 de janeiro de 2025, um dia após as três indicações ao Oscar, a certidão de Rubens Beyrodt Paiva foi retificada, conforme a Resolução. Nela também consta que a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) atestou o óbito de Rubens, cujo corpo jamais foi encontrado. Nos termos do que informou o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, a entrega das certidões não será efetuada pelos cartórios, mas pela CEMDP em sessões solenes e com pedidos de desculpas e homenagens.
No final de dezembro de 2024, outras menções institucionais foram realizadas. Dessa vez o filme em questão serviu como base argumentativa para a decisão do Ministro Flávio Dino em sede de agravo no recurso extraordinário nº 1.501.674/PA (Brasil, 2024), conforme se vê a partir do trecho que segue:
“No momento presente, o filme “Ainda Estou Aqui” – derivado do livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres (Eunice) – tem comovido milhões de brasileiros e estrangeiros. A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho”
Nesta decisão foi pautado o seguinte tema para reconhecimento ou não de repercussão geral: “Possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência, à luz da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei nº. 6.683/79” (Brasil, 2024). Tal temática apresenta-se como uma ruptura importante em relação ao entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal em sede da ADPF nº 153/DF, momento em que a Corte entendeu pela existência de compatibilidade da Lei de Anistia com a Constituição Federal.
Todavia, conforme pontuado de maneira lúcida e precisa em diversos trabalhos jurídicos (Meyer, 2012), tal decisão incorreu em um ataque às próprias bases da Constituição, que se estabeleceu como um rompimento definitivo à ordem autoritária anterior.
Não obstante a importância da Lei para a oposição política, ela também estendeu a anistia aos agentes de Estado perpetradores de graves violações aos direitos humanos, sendo, portanto, um dos mecanismos possibilitadores de uma transição almejada pelos militares: “lenta, gradual e segura”. Contudo, a anistia quanto aos crimes praticados pelo Estado brasileiro é incompatível com o projeto constituinte de 1988, que firma seu compromisso com a proteção e guarda dos direitos humanos.
Por falar em quebra ou tentativas de quebra da ordem institucional, cabe mencionar ainda que o filme foi citado pelo Presidente Lula em evento que marcou 2 anos dos ataques golpistas de 08 de janeiro: “Hoje é dia de dizermos em alto e bom som: ainda estamos aqui”. Observa-se, com isso, como as leituras sobre o passado são articuladas de modo complexo a partir do tempo presente. As instituições, ao que parece, (RE)lembraram de reafirmar que: Foi ditadura. Remoer o passado é necessário, Presidente.
E para remoer, lembrar, relembrar e não esquecer, o Museu da República, localizado no Palácio do Catete – antiga sede do Poder Executivo federal – abrigará a exposição “Rua da Relação, 40: Testemunho material da violência de Estado”. Conforme destacado por manchetes do noticiário (“Sucesso de ‘Ainda Estou Aqui’ rende exposição inédita com elementos encontrados no antigo prédio do Dops”), a mostra apresentará documentos inéditos, entre os quais um relatório elaborado pela Secretaria de Segurança do Estado da Guanabara, de junho de 1964, que detalhava o monitoramento da viagem do ex-deputado Rubens Paiva rumo ao exílio na Iugoslávia.
Estas são apenas algumas das menções institucionais realizadas diretamente ao filme Ainda Estou Aqui, o que aponta para a ideia, trazida por Ismail Xavier (2008), de que o cinema não é meramente um conjunto imagens em movimento, mas uma linguagem mobilizadora e desmobilizadora de práticas sociais, tais como o direito. O caso desvela como a separação entre fato e representação é, por vezes, redutora, já que o cinema desestabiliza tal dicotomia ao nos fazer refletir e transformar realidades a partir do que se apresenta na tela.
E, para voltar à primeira pergunta deste ensaio, qual seja: “Teríamos rompido as fronteiras do norte global ao fazer que sejamos compreendidos sem exotismo, revelando, ao invés disso, as nossas verdadeiras misérias vivenciadas ao longo de uma sucessão de golpes de Estado?”, respondemos:
Mais importante do que fazer com que sejamos compreendidos pelo norte global é que alcancemos, enquanto sociedade, reconhecimentos básicos após um período de negacionismo histórico governamental: Foi ditadura.
Reassumir o lugar de herdeiros que compartilham um passado em comum é um passo essencial para o rompimento com entendimentos problemáticos como o disposto na ADPF nº 153/DF e com o imobilismo do Supremo Tribunal Federal em relação ao caso Rubens Paiva – que ainda se encontra pendente de julgamento.
Ao que parece, estamos caminhando para um redimensionamento institucional de um período que foi e é por muitas vezes relegado. Neste sentido, vale destacar que as lutas pelo (e do) passado são constitutivas do que somos e do que pretendemos ser enquanto sociedade, o que reforça os sentidos de e da Constituição que ainda está aqui.
(*) Júlia Guimarães e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira são professores da UFMG