O cofre e o doutor - créditos: divulgação
20-12-2025 às 11h28
Caio Brandão (*)
Por volta das seis da manhã, dia nublado, como sempre, em meio aos primeiros movimentos que, na rua, começavam a gerar os ruídos costumeiros da cidade, que acordava para mais uma jornada de enfrentamentos.
Cidade guerreira, do Sul, um tanto paroquial nas suas propostas, mas que gerou personalidades de cunho inconfundível no cenário da política e das suas nuances mais notórias.
Na rua, defronte à casa, parado estava um caminhão do tipo baú, sem placa e com adornos estranhos estampados nas laterais da carroceria, algo semelhante a samambaias, cujas folhas jovens se apresentam enroladas como fetos que não produzem sementes e flores.
Varassim, empresário local e entendido em plantas pteridófitas, particularmente em samambaias conhecidas como “dinheiro em penca”, especialmente aquelas nascidas no entorno de prédios públicos, questionou a tonalidade do verde da estampa, descorado, segundo ele, criticando a palidez que empobrecia a fartura anunciada.
Do caminhão desceram o motorista e seus dois ajudantes. Vestido com camiseta de estilo cavada, descuidada e surrada, com puídas soltas e descontraídas. Tião, o motorista, tocou da casa a campainha com força, sem atinar para a hora precoce que ainda não anunciara sequer o desjejum da família.
— Que porra é essa? — gritou do alpendre o vigia, enquanto espanava com os dedos as células mortas e o muco adormecidos na remela que nos olhos acumulara em sua vigília noturna.
— Tamo trazendo o cofre do doutor — respondeu Tião, enquanto para dentro da calça alinhava a camiseta de cor bege e estampada com a figura de um político de renome no Planalto Central.
— Pera aí — pediu tempo o vigia Jesualdo, que foi acordar o doutor e anunciar a chegada do cofre.
— Cofre, que cofre? — perguntou o doutor, irado, ao Jesualdo, que esclareceu tratar-se de algo esquecido em apartamento funcional do doutor quando, em Brasília, exerceu função de destaque.
— Nunca tive cofre algum! — disse o doutor, aos gritos, enquanto entreabria a porta da sala e com gestos vigorosos mandava o motorista Tião retornar com o cofre à origem.
Tião franziu a testa, chamou os ajudantes, colocou na borda da carroceria do caminhão uma prancha de madeira e fez descer o cofre imenso e pesado, que se chocou com o asfalto sem barulho, mas provocando cicatriz da sua chegada. Ato contínuo e sob os protestos do doutor e do vigia Jesualdo, o cofre foi jogado no jardim da casa pelo motorista e os chapas, que pareciam alcoolizados. Foram embora, sem dar atenção aos apupos do doutor e à gesticulação obscena do vigia Jesualdo, com o terceiro dedo em riste.
— E agora, doutor? — perguntou Jesualdo. — O que devo fazer com o cofre?
— Ponha para dentro e cubra essa merda com uma lona verde, para se misturar com o gramado, antes que apareça a imprensa, chamada por algum vizinho abelhudo. Que situação, hein Jesualdo — exclamou o doutor, refletindo sobre o conteúdo do cofre e a perplexidade de Madame, prestes a acordar, e que certamente iria querer o cofre sem maiores questionamentos, desprezando os riscos decorrentes.
— O que tem lá dentro? — perguntou Jesualdo.
O doutor respondeu: — Sei lá, não é meu, pode ser até uma bomba, um cadáver, uma mala contendo apetrechos eróticos, ou até um dossiê contra algum político local — disse ofegante, enquanto para cima resgatava a calça do pijama de listras brancas e vermelhas, que se quedava agressivo um palmo abaixo do umbigo.
— Será dinheiro? — completou Jesualdo, ao que o doutor respondeu de forma enérgica: — Não diga essa palavra aqui, Jesualdo, nessa cidade orelhuda, que tudo vê e tudo inventa, até dinheiro nas paredes e escondido em pneus de carros de coleção. Ainda mais agora — completou o doutor, que aquele juiz inclemente quer alçar voos por estas bandas.
— Mas, doutor, o senhor não vai abrir o cofre?
— Jamais — respondeu o doutor. — Vamos primeiro chamar um vidente lá de Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero, onde tem um cara, um tal de Carlinhos, que costumava aparecer por aqui para dar consultas àquele gordinho de fala rebuscada, nosso conhecido.
— E se o Carlinhos disser que é dinheiro lá dentro?
— Aí fodeu — respondeu o doutor. — Vamos pedir ao Mauro, nosso amigo, para converter o cofre numa salamandra, sem abri-lo, e transformar em cinzas essa coisa nefasta que mandaram para cá para me sacanear, antes que aquele membro da família Muridae fique sabendo.
— E se forem documentos, um dossiê contra algum adversário, com fotos de nudes e outras extravagâncias, vai queimar também?
— Lógico que sim, vamos queimar no maçarico, porque nada mais escandaloso do que dinheiro misturado ao poder e temperado por bundas. Sabe-se lá de quem são essas bundas e de onde veio o dinheiro? Não vamos correr o risco de lidar com essa batata ardente, coisa de aventureiros acostumados a bisbilhotar algures, alhures e nenhures.
— Essa gente, esses tais algures, alhures e nenhures, eles moram aqui na cidade?
— Esqueça, imbecil — respondeu o doutor, completando: — Vamos abrir um buraco e enterrar a coisa, acho que é o melhor a fazer.
— Aqui no jardim? — perguntou Jesualdo. — Não seria melhor no cemitério?
— Sim — respondeu o doutor. — Porque num jazigo perpétuo a coisa ficaria em sigilo por uns cem anos, do tipo desses decretos que o poder público edita para não mostrar aquilo que todo mundo quer saber.
— Se o doutor quiser — sugeriu Jesualdo —, posso enterrar em alguma chácara de político de prestígio e depois fazer denúncia anônima. Vai ser uma festa nesta cidade fofoqueira, não é?
— Não pode, imbecil, estou em idade avançada, a memória falha e o cofre pode ser meu. Nunca tive cofre, mas posso estar escondendo alguma coisa de mim mesmo, como saber? A idade é uma merda.
— Então posso explodir o cofre?
— Idiota — respondeu o doutor. — Só me faltava uma bomba nessa cidade, para gerar romaria de crentes em todo tipo de versão e narrativa.
— Então, doutor, não sei mais o que fazer. O melhor é o senhor mandar a família a passeio em Alto Paraíso, procurar discos voadores, puxar o cofre para dentro de casa e abrir a coisa discretamente, para saber o conteúdo. Se for algo cabeludo, tome um lexotan e toque fogo.
— Não, Jesualdo — respondeu o doutor. — Estou de mãos atadas e indeciso sobre o que fazer. Então, procure um barqueiro e vamos jogá-lo na barragem, aquela grandona, que abastece a cidade. Tem que ser num lugar profundo e o barqueiro deverá ir de olhos vendados.
— Doutor — ponderou Jesualdo —, nessa terra de fofoqueiros, mesmo sem enxergar, o barqueiro vai entregar.
— Então, Jesualdo, vamos abrir o cofre, encarar o conteúdo, colocar o barqueiro dentro e despejar a coisa na calada da noite.
— Vamos nessa, doutor — respondeu Jesualdo. — – Tamo junto, mas vou usando colete salva-vidas, por via das dúvidas.
(*) Caio Brandão é jornalista

