Salete - Ribeirões como este que secaram, são mais de uma centena, só no Alto Jequitinhonha - créditos: Gazeta de Araçuaí
29-12-2025 às 08h44
Soelson B. Araújo*
O estudo Salvaguardas ambientais: analisando impactos da monocultura de eucalipto, realizado pelo Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV) em parceria com UFMG, IFNMG, UFVJM, IFLMG, IFSMG e o apoio do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), confirma o que vem sendo denunciado há anos: a monocultura de eucalipto tornou-se um vetor de crise socioambiental no Alto Jequitinhonha (MG).
O estudo demonstra a expansão e dominação do território, onde mais de 61% das áreas rurais da região estão hoje são formadas por plantações de eucalipto, uma expansão que não decorre de processos naturais, mas de políticas públicas de incentivos fiscais iniciadas ainda na ditadura militar (anos 1970) e perpetuadas pelas decisões econômicas das últimas décadas.

Essa ocupação intensiva substituiu vegetação nativa de Cerrado, bioma fundamental para a regulação dos ciclos hídricos, criando um cenário em que o território é moldado para atender interesses corporativos — especialmente para produção de carvão vegetal destinado ao setor siderúrgico — em detrimento dos modos de vida tradicionais.
A substituição do cerrado pela monocultura fez com os recursos hídricos entrassem em colapso reduzindo drasticamente a água disponível no sistema ecológico local: enquanto a vegetação nativa infiltra cerca de 50% da chuva para recarga dos aquíferos, as áreas cobertas por eucaliptos chegam a infiltrar apenas 29%.
Essa perda de recarga não é simbólica. Estimativas baseadas em dados hidrológicos indicam que a recarga hídrica da região pode ter sido reduzida em centenas de milhões de metros cúbicos por ano em razão da extensão das plantações em áreas de recarga dos mananciais (chapadas e veredas). Repositório UFMG
Consequentemente, veredas, nascentes e córregos que antes alimentavam o Jequitinhonha e seus afluentes secaram ou têm fluxo extremamente reduzido, configurando um quadro de insegurança hídrica crônica para os habitantes rurais. Pesquisas locais reportam que em algumas partes do Alto Jequitinhonha até 89% das nascentes desapareceram ou estão gravemente reduzidas, sobretudo nas chapadas onde a água armazenada no solo tem papel de “caixa d’água natural”.

O impacto sobre as comunidades tradicionais é profundo e multifacetado:
- Consumo hídrico insuficiente: cerca de 52% das famílias na região consomem em média apenas 43 L de água por pessoa por dia, muito abaixo dos 110 L/dia recomendados pela OMS para atender necessidades básicas de higiene, preparo de alimentos e saúde, segundo o Idec
- Custo social da crise: o fornecimento de água depende cada vez mais de caminhões-pipa pagos por famílias rurais e pelo poder público, enquanto os lucros da monocultura ficam com as empresas envolvidas.
- Perda de modos de vida familiares: as tradições agrícolas, coleta de produtos nativos, pesca de pequenos cursos d’água e outras práticas culturais são progressivamente inviabilizadas pela escassez de água e pela concentração fundiária que favorece grandes monoculturas.
O relatório do Guia dos Bancos Responsáveis (GBR), citado no estudo, aponta que instituições como o BNDES e o Banco Votorantim financiaram a expansão da monocultura de eucalipto — por exemplo, o BNDES investiu mais de R$34 milhões na empresa Aperam Bioenergia entre 2016 e 2017, sem salvaguardas ambientais que evitassem os impactos aqui descritos, segundo o Idec
Esse financiamento evidencia a falta de compromisso de bancos e financiadores com critérios socioambientais robustos — um problema que, em última instância, transfere os custos ambientais e sociais para as comunidades afetadas. Ver (Guia dos Bancos Responsáveis)
Os dados apresentados vão além de uma crítica simplista à monocultura: eles evidenciam um modelo de desenvolvimento que trata água, terra e vida comunitária como recursos secundários frente aos interesses econômicos de setores globalizados da economia.
Para além da denúncia, algumas linhas de ação são urgentes:
- Implementação de políticas de restauração ambiental voltadas à recuperação de vegetação nativa em áreas de recarga hídrica, com prioridade nas chapadas e veredas já degradadas.
- Fortalecimento de sistemas agroecológicos e diversificados, apoiando a produção familiar em detrimento de monoculturas de uso intensivo de água.
- Revisão de critérios de financiamento público e privado, instituindo salvaguardas socioambientais que realmente protejam comunidades e ecossistemas vulneráveis.
- Monitoramento participativo da água e do solo, com transparência, para que as decisões sejam orientadas por ciência e pelo protagonismo comunitário.
Um aspecto frequentemente observado no debate local é o silêncio sistemático de representantes políticos eleitos na própria região — deputados, prefeitos e vereadores — diante dos efeitos da monocultura de eucalipto sobre água, solo e modos de vida tradicionais. Apesar de os impactos serem amplamente documentados por pesquisas acadêmicas e por organizações da sociedade civil, muitos mandatários evitam o tema ou limitam suas intervenções a posições protocolares. Esse comportamento político tem sido interpretado por moradores e ativistas como reflexo da influência econômica e social exercida pela principal empresa reflorestadora da região.
A Aperam BioEnergia, subsidiária da Aperam South America que domina vastas áreas de eucalipto no Alto Jequitinhonha, figura como um dos atores econômicos mais poderosos no território, com operações que já gerou alguns milhares de empregos diretos e indiretos no passado e investimentos importantes em programas sociais e ambientais no Vale.
Embora não existam dados públicos detalhando isoladamente o faturamento anual da Aperam BioEnergia, informações financeiras consolidadas da controladora Aperam S.A., da qual a BioEnergia faz parte, indicam que o grupo global registrou uma receita próxima a US$ 6,9 bilhões no período de 12 meses até 2025 (dados trailing twelve months). CompaniesMarketCap Essa dimensão de receita — superior a 6 bilhões de dólares anuais — ou seja, R$ 33,1 bilhões correspondente ao total consolidado de receitas do grupo Aperam revela o enorme poder econômico e financeiro que circunda e condiciona decisões políticas e discursos na região, comparado à capacidade de ação dos pequenos agricultores e comunidades tradicionais afetadas.
Esse desequilíbrio contribui para que o debate público e legislativo sobre a crise hídrica e os impactos socioambientais seja tímido ou praticamente ausente nas casas legislativas municipais, na Assembleia Legislativa e Câmara dos Deputados, refletindo não apenas falta de agenda política, mas também — em muitos casos — evitação ativa de confronto com uma empresa que movimenta grandes recursos e exerce influência local direta e indireta.
Este quadro — em que mais de metade das terras rurais estão dominadas por uma cultura que exerce pressão extrema sobre o ciclo da água — não é inevitável, mas sim o resultado de escolhas políticas e econômicas. Reconhecer isso é o primeiro passo para reconstruir um futuro mais justo, resiliente e sustentável para o Vale do Jequitinhonha.

