De repente, o casal sentiu que alguém havia invadido a casa e não sabia o que fazer
Em nenhum momento houve anúncio ou sequer um sinal de quem havia invadido a casa. Abelardo e Mika não puseram à locação nenhum dos cômodos. Por que, então, a invasão da casa?
03-02-2023
18h:32
Bento Batista*
Já fazia alguns dias havia a suspeita da presença de gente estranha em casa, um misterioso novo inquilino.
Fosse quem fosse, Abelardo achava esquisita a maneira como o estranho entrou sem bater na porta e se refugiou em algum lugar da casa.
Não teve nem o devido respeito ou os bons modos recomendáveis em qualquer relação humana. Empregava o pronome na forma masculina, mas bem podia ser feminina.
Supondo ser algum macho, ele entrou e ocupou um ignorado lugar da casa. Talvez estivesse no teto, de onde vinham de vez em quando ruídos de unhas unhando o material sintético do forro.
Mas, convém enfatizar, em nenhum momento houve anúncio dele como sói fazem as gentes de bem. Mesmo porque Abelardo e Mika não puseram à locação nenhum dos cômodos da casa.
Eles tinham suspeitas suficientes para afirmarem ser um intruso. Entrou de mansinho, porque ninguém viu. Nem se podia dizer quando isso aconteceu. Tanto podia ter sido três dias atrás ou uma semana. Ele entrou sorrateiramente, dúvida não havia, porque o casal esteve em casa o tempo inteiro por esses dias e noites, e sempre atento a tudo.
O pior para os dois, era saber ter em casa um novo inquilino e ignorar completamente o lugar onde ele se escondeu. Atitude deplorável como essa só fazem determinadas gentes que se vão apossando de tudo como se não tivesse dono ou fazendo de conta que não sabem que tem dono.
Na noite anterior, acordaram em meio à madrugada com um barulho esquisito vindo de cima para baixo. Saltaram da cama achando ter caído algo do forro sintético. Não, nada havia caído. Se de fato caiu alguma coisa – e alguma coisa sem dúvida havia caído – foi do telhado sobre o forro.
Foi a partir desse incidente que Abelardo e Mika chegaram a uma conclusão: pode ser que o novo inquilino tenha se ocupado não de um dos três quartos da casa. Menos, ainda, do banheiro, da sala ou da cozinha.
Podia ter caído algo lá na área de serviço, mas não, o intruso talvez tivesse se apossado de toda a parte de cima da casa e devia estar folgadão sobre o forro sintético.
Enquanto isso, a cada hora do dia Mika ia ficando introspectiva e deixava transparecer no semblante o medo de estar lidando com algo desconhecido e poderoso em demasia. Achava que a vida dela e de Abelardo estava sob risco, e começou a ficar paranoica.
Podia ser mais de um indivíduo. Até três. Podia ser uma família inteira, pais e filhos. De dia ficavam em silêncio. Não se escutava nada vindo do andar de cima, quer dizer, entre o telhado e o forro. Talvez o movimento da casa os inibisse. À noite, enquanto o casal dormia, eles entravam em ação.
Mas, naquela noite em que Abelardo e Mika ouviram algo cair, logo de manhã cedinho, antes de pôr água açucarada para os beija-flores e as frutas para os demais passarinhos, ao abrir a porta da área de serviço, havia marcas de sangue do lado direito de quem desce as escadas, na parede e em alguns degraus.
As marcas estavam debaixo da janela do quarto onde dormia o casal, mas eles não ouviram nada. Neste caso, concluíram que algum bicho noturno devia ter apanhado uma presa e esfregara-a na parede. E ficou só nisso.
Na noite seguinte nada de anormal aconteceu. O casal ficou se perguntando “será que o inquilino saiu para visitar alguém? Sexta-feira da Paixão de Cristo, à noite, não é bem a ocasião para sair fazendo visitas”.
Mas, logo de manhã cedinho a impressão era a de que o intruso acabava de chegar da rua. Por onde andava? Entrou e se acomodou logo, como quem chega cansado e nem ânimo teve de tirar a roupa para dormir. Desmontou logo sobre a cama. Foi o que o indivíduo deve ter feito porque o ruído desta vez realmente incomodou e Abelardo e Mika se sentiam impotentes para fazer alguma coisa. Desconheciam do que ou de quem se tratava. O intruso não se dignou em dar as caras. Os dois mantinham-se numa postura de meros espectadores.
No dia anterior, o barulho foi no quarto. Depois, eles ouviram barulho no forro do corredor. Tinham impressão de que o indivíduo possuía unhas grandes.
Do tipo das de “João Felpudo”, personagem da escritora Lúcia Casasanta, no livro “As Mais Belas Histórias”. Ouviram o arranhar das unhas dele. E foi só.
O inquilino novo fez recordar ao casal um conto do extraordinário escritor Julio Cortázar, nascido em Bruxelas, filho de pais argentinos, conto intitulado “A Casa Tomada”, no qual ele narra a invasão duma casa por algo não identificado, que se vai apossando dela de tal maneira que os donos, dois irmãos, foram obrigados a abandoná-la.
Mas este não era o caso de Abelardo e Mika, o inquilino não tem nada de fantástico. Ele é real, só que eles não sabiam quem ou o que era exatamente. Existir, existia porque dava sinais de vida. Mas, não eram vistos. Dele ou deles só se ouvia o ruído. E embora não fossem vistos não significava que tinham de ficar indiferentes a ele – ou a eles, pois não se sabia exatamente quantos eram.
O casal levou a notícia da invasão da casa a alguns amigos e eles foram taxativos ao dizerem: “É saruê”. Podia ser. E apresentaram duas opções para dar cabo dele: “chumbinho” ou “gatoeira”, uma espécie de armadilha.
Das duas opções a alternativa mais aceita foi a “gatoeira”. O bicho ficaria aprisionado e depois podia ser solto lá embaixo, na “terceira margem” do Ribeirão, a montante da cachoeira, só para lembrar João Guimarães Rosa.
Nem uma coisa nem outra foi necessária, porque de repente o intruso desapareceu. Já não se ouvia mais o ruído de unhas unhando o forro.
Abelardo esqueceu logo o incidente, mas, Mika não. Se ela ouvia um ruído estranho no meio da noite dizia, assustada:
- Invadiram a casa de novo!
*Escritor