Créditos: Divulgação
27-10-2025 ás 08h22
Solange Mendes*
Quando pequena eu tomava leite de cabra. Meu pai, acostumado às delícias nordestinas, nos ensinou desde cedo que leite de cabra era mais gostoso e mais forte. Para garantir a minha robustez, ele carregava uma cabra amarrada na carroceria do caminhão e em qualquer lugar, Bida, esse era o nome dela, tinha leite fresco e quente para me alimentar. Depois quando comecei a estudar ela também se acomodou na nossa casa, que tinha um grande quintal, ia de uma rua a outra, com pés de manga, figo, goiaba, urucum e uma horta que só tinha couve. Toda tarde meus irmãos levavam a cabra pra pastar, enquanto eu tentava pegar girinos, num córrego sujo que tinha na beira da linha férrea, pra ver se viravam sapos.
Parei de viajar com meu pai por volta dos sete anos, para estudar, pois ninguém entrava na escola antes disso, e as crianças passavam esse tempo solto na vida, só por conta de brincar e sonhar.
Meu pai tinha um caminhão que era pau-de-arara, a estrada era nossa casa, no caminhão além da lona que cobria e os bancos de madeiras onde as pessoas se sentavam, não podia faltar um fogão e tudo que uma cozinha precisava: rapadura, farinha, feijão carne de sol, banha de porco e vontade da minha mãe de fazer comida em qualquer parada. Muitas vezes fomos a Brasília levar trabalhadores para trabalhar naquela que hoje é a capital do país. A primeira vez que fui, o moço que contratava os trabalhadores, por não ter lugar no alojamento, nos levou para um hotel que também estava tendo uma reforma, feita por ele e ali pela primeira vez, tive contato com as benesses de quem tem dinheiro. À noite minha mãe ligava e pedia o jantar, chegava o garçom com uma sopa que antecedia o jantar, eu e meu irmão, nos fartávamos de comer, de chegar a ter congestão de tanta barriga cheia, pois o gosto era bem diferente das gororobas feita nas estradas e, além da comida boa, conheci e aprendi a telefonar ali, toda hora eu tinha alguma coisa para falar na recepção….
Passar por São Paulo era doer o pescoço de tanta curiosidade, vendo aquele amontoado de gente e aqueles prédios que nem eu nem meus irmãos tínhamos coragem de subir. Uma minha irmã nasceu lá.
No Rio de Janeiro, o mar com aquelas ondas que corriam atrás da gente, me faz ter medo dele, até hoje, pois meu pai, com os parentes de minha mãe que lá moravam, só diziam que a onda levava, que a maré derrubava e eu nunca quis me arriscar. Lá também nasceu uma outra irmã e outros em vários lugares…
Viajar por dias e dias não era das melhores coisas a fazer, mas só percebi isso depois, quando fincamos os pés em Governador Valadares. Lá, andar de bicicleta, ouvir falar da América, e estudar, fizeram uma grande diferença na minha vida. Ir a programas de auditório, foi um passo para eu começar a cantar nas Rádios Educadora e Por um Mundo Melhor, o que quase me fez ser cantora. No Natal ganhava bonecas da Estrela, bicicleta, até um acordeom ganhei um dia, tinha muita diversão e liberdade, muitas alegrias com carnavais no Ilusão, desfiles com carros alegóricos que enchiam os olhos e o coração de orgulho e mais ainda, quando minha irmã foi destaque.
Mas mudar, de mala e cuia para Itaobim, de um dia pro outro, me fez parar de sonhar e viver uma realidade que só depois de estar bem longe me fez ter alguma saudade. Sentia falta de muita coisa, pois me tiraram a boa escola, os amigos, televisão, música, livros e festas, mas logo me adaptei a falta de tudo e comecei a brincar de boi com maxixe, de cozinhadinha, de subir nos pés de manga, de coco, de comer frutas do mato, de pescar com minhoca tirada da terra, de lavar roupas com as lavadeiras do Hotel, de arear as panelas com areia e mato, de fazer sabão com soda, de matar galinhas, matar passarinhos com estilingue, redar na beira do córrego, engolir piaba viva pra aprender a nadar, matar e cozinhar cobra, participar dos sambas em mãe Nora, dançar nas festas juninas de Dé Rodrigues, correr atrás do Boi-de-Janeiro, ser pastorinha nas folias de Reis, tomar cachaça quente em Guiomar Ferraz, comer as comidas esquisitas de Canjira, atravessar a ponte de bicicleta com as mãos soltas, jogar o material escolar de cima da ponte no quintal de Julão e descer correndo pra buscar com medo dele, e de planejar durante dias uma descida de bananeira pelo córrego São João. Foram tantas aventuras que quando paro pra pensar nem eu acredito. Por isso escrevo, para não esquecer…
Numa das vezes em que fomos descer o córrego nas bananeiras, não consegui descer a tempo e como não sabia nadar cheguei até o rio Jequitinhonha. As amigas de aventura gritaram e um canoeiro conseguiu me tirar de lá, mas se por um momento eu tivesse lembrado dos amigos de Valadares, ia dar um safanão no canoeiro, seguir boiando e quem sabe chegar até Miami. Nadar eu nunca aprendi, mas coragem eu tinha de sobra!

