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27-02-2025 às 07h10
José Luiz Borges Horta*
Do ponto de vista jurídico, a complexidade da Igreja Católica é ainda maior, embora poucos sejam os juristas que se dedicam a estudar as questões que envolvem o Vaticano e o imenso raio de ação que atinge uma Igreja construída e pensada como universal — e universal em grego é katholikós. De início, há dois diferentes ramos do Direito que cuidam da Igreja Católica: o Direito Canônico e o Direito Eclesiástico, que não se confundem e possuem ambos suas instituições e sofisticações. Canônico é o direito produzido pelos séculos pela própria Igreja Católica e Eclesiástico é o direito legislado pelo Estado para reger suas relações para com a Igreja ou as igrejas.
Interessante lembrar que na antiga tradição da construção das primeiras universidades, saídas de dentro da própria Igreja Católica, o doutorado em Direito podia ser utriusque juris: doutorado nos dois direitos, o Direito Civil (e todas as vezes no Direito em que apareça a menção civil quase sempre a forma correta de entender é pensar na palavra comum, simples, usual) e o Direito Canônico.
Ocorre que, quando observada pela Teoria do estado, a Igreja Católica e Apostólica Romana é também um Estado: o Estado do Vaticano. Uma cidade-Estado, com uma organização política extremamente complexa e inusitada, que vive um regime político tão difícil de ser compreendido que é, ao mesmo tempo, a) uma monarquia absoluta eletiva, b) uma federação com imenso poder no seus entes federados (as dioceses) e c) uma nação proprietárias de uma rede de bens (templos, escolas, universidades, moradias) espalhados por boa parte dos outros Estados do mundo. Seus embaixadores credenciados junto aos demais Estados são chamados de núncios apostólicos, e as relações diplomáticas da Igreja/Vaticano com um Estado são baseadas em um tratado bilateral — chamado Concordata (a do Brasil é de 2008).
Há quem sustente que a cultura ocidental só passou por uma única e verdadeira revolução: a Reforma Gregoriana — brilhantemente estudada em trabalho de Philippe Oliveira de Almeida —, que transformou imensamente todos os campos da vida cultural. E ela se iniciou por algo que boa parte dos católicos nem sequer considera imaginável ou possível: o papa eleito não era um sacerdote, não era ordenado, não tinha sido eleito bispo, nem elevado a cardeal, mas apenas e tão somente batizado na Igreja Católica e Apostólica Romana.
Não estou contando uma novidade. Todo e qualquer católico batizado pode ser eleito papa em um conclave. Um conclave é um dos espaços mais misteriosos ou talvez místicos que ocorrem ou podem ocorrer sobre a face da Terra. Todos os Cardeais da Igreja Católica que ainda possuam idade suficiente para votar são encerrados cum clavis (a chaves) dentro da Capela Sistina, onde permanecem isolados, sem nenhum contato com o mundo externo, em sigilo total, enquanto se opera um dos grandes momentos místicos da vida católica. Para a doutrina católica, os cardeais votam, mas quem determina os votos é o Espírito Santo, que portanto é o verdadeiro eleitor do novo monarca, devendo os cardeais, os príncipes da Igreja, indagar no seu mais profundo e revelar em seu voto a vontade do Espírito Santo.
Sabemos também que a Igreja, já do ponto de vista político, sempre viveu uma disputa entre guelfos e gibelinos, os primeiros sendo defensores do poder do papado — ou do monarca espiritual, o bispo de Roma, sucessor apostólico de São Pedro —e os segundos defensores talvez de uma desmistificação do poder eclesiástico, fortalecendo as instituições do Império (Carolíngio, Sacro Império Romano-Germânico, Habsburgo, e seus mil anos de construção de uma instituição federalista). Observando deste ângulo, como provou César Cardoso de Souza Neto em sua tese doutoral, o sempre polêmico Concílio Vaticano II na verdade constituiu-se em uma Reforma Gibelina dentro da Igreja. Veja-se que um concílio não é um conclave, não tem o poder de eleger papas, é uma reunião episcopal (de bispos), não cardinalícia, ainda que muito importante para questões da fé. Tudo o que os religiosos das catacumbas do Vaticano II construíram não era anticatólico, como muitos chegam a acusar, mas somente um movimento interno à história multimilenar da Igreja, que visou empoderar as pastorais locais, empoderando os bispos e as línguas faladas pelos povos e, consequentemente, enfraquecendo Roma, o papa e o latim.
Décadas e décadas depois, não há quem negue o resultado desastroso para as culturas ocidentais da abrupta retirada do latim do coração da vida espiritual dos católicos: não só a Igreja Católica não cresceu, como parece inegável a existência de uma cada vez maior crise intelectual e ética na cultura ocidental.
Essa crise não é, obviamente, culpa exclusiva de um único fator, mas a falta da presença da base clássica latina na formação cultural e educacional é facilmente comprovável pelo grosseiro festival de proibição e patrulha de palavras e defesa intransigente de gramáticas alternativas à da língua culta — o que já mostra que se defende um povo incapaz de falar e de pensar, privado das palavras disponíveis: sem vocabulário é impossível pensar e/ou expressar-se, como bem sabem os fascistas desde ao menos o 1984 de George Orwell. Esse erro, o do afastamento do latim, desastroso para a cultura, soterrou a beleza inquestionável das missas tridentinas (vinham da Contrarreforma do Concílio de Trento, que reagiu à Reforma Protestante), onde as arquiteturas faziam o latim ressoar como a língua dos anjos — e a missa era sagrada, havia anjos presentes, era possível ouví-los na infinita maravilha do canto gregoriano.
O Concílio Vaticano II quis atender às modernidade norteamericanizantes do pós-guerra, tornando a Igreja mais permeável às pastorais locais. Conseguiu uma Igreja relaxada, sem poder espiritual e sem valor místico, com missas que indiferem de cultos de algumas das religiões reformadas.
Curioso e quase vertiginoso é o encadeamento de fatos das décadas posteriores à Reforma Gibelina, ou Vaticano II. 1. Contrariando a vasta tradição de eleição de papas latino-europeus, tivemos três papados, digamos, diversos: um polonês, um alemão e um argentino. 2. Os três papados contaram com a imensa proeminência de um mesmo Cardeal, que comandou o antigo Santo Ofício no primeiro, assentou-se no trono papal no segundo e se tornou o primeiro e único Papa-emérito da história, até meses atrás, no terceiro. 3. O jovem padre Joseph Aloisius Ratzinger (depois Papa-emérito) foi um dos peritii, dos redatores efetivos, dos documentos do Concílio Vaticano II. 4. Para terminar, Joseph nasceu exatamente na região do principal castelo dos gibelinos. Tudo isso parece enredo de filme de terror (o diabo veste Prada), mas nem sempre a Filosofia da História nos mostra heróis — às vezes ela nos revela os momentos cruciais onde erramos e que institutos ou instituições precisam ser removidos para permitir um futuro melhor.
Recuperar a mística perdida na Reforma Gibelina (o Vaticano II) é tarefa chave. A mística, a simbologia, a força espiritual. O valor da voz do Vigário de Cristo. A força da presença de Sua Santidade em cenários geopolíticos chave, como hoje Moscow e Tel Aviv (ou pelo menos Bruxelas, e o Parlamento Europeu). Um Papa sem medo de ser Papa, de dormir na cama papal, de comer a comida papal. Um papa disposto a um novo tempo, no qual a Igreja terá de postar-se como Estado e exigir voz e vez não somente nas pastorais de base, mas nas elites políticas e jurídicas dos Estados ocidentais.
Uma Igreja de milhares de anos não pode aceitar ser tratada como uma seita de fanáticos de time de futebol. A tradição exige e merece respeito, daí porque a atuação junto às elites intelectuais também é prioridade para a Igreja da Contrarreforma Guelfa. E é exatamente esse movimento, ou momento, que terá sua vez a seguir, com o fim da ausência de centralidade da Igreja Católica no Vigário de Cristo: o Ocidente precisa de líderes capazes de dizer — e de calar —, sem o que a civilização greco-romano-cristã tenderá a diluir-se na geleia da alienação e da debilização. É essa alienação que fez com que, depois de trinta anos de governos neoliberais no Brasil, parte de nosso povo tenha perdido tanto sua identidade a ponto de viver perseguindo a brasilidade e inventando conservadorismos morais enlouquecidos que jamais seriam aceitos nas tradições latinas.
Rezemos para que, em conclaves posteriores, a fumaça branca nos traga uma esperança de renovar, pela tradição, a Santa Madre Igreja. Que Maria passe à frente!
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José Luiz Borges Horta, 53, é Professor Titular de Teoria do Estado na Universidade Federal de Minas Gerais e professor visitante sênior PrInt-CAPES na Facultat de Filosofia da Universitat de Barcelona. Foi batizado na Igreja de Santa Rita de Cássia e recebeu sua primeira comunhão na Igreja de Sant’Ana, ambas em Belo Horizonte. Contato: zeluiz@ufmg.br