29-12-2024 às 11h11
Marcelo Galuppo
Imagino que a geração alpha sequer cogite que tenha havido um mundo sem celulares, mas eu conheci um assim e posso provar. Conversando com meu primo Ricardo Galuppo, lembramo-nos da saga que era usar o telefone há apenas quarenta anos, antes da privatização da telefonia no Brasil, quando somente Chiquinho Scarpa possuía um celular em seu Rolls Royce. Não era fácil para qualquer terrorista ou golpista comprar uma linha telefônica, como hoje: era burocrático e custava mais do que um carro, e a maioria das pessoas apenas conseguia alugar uma. Não era nosso caso: durante minha infância, éramos os felizes proprietários de uma linha (primeiro 1718, depois 721-1718, e finalmente 3721-1718). Meu pai era obstetra, e telefone era item essencial em casa. Tínhamos só um aparelho (preto, de baquelite), ligado à rede por um fio, mas havia uma extensão no quarto de meus pais. À noite, quando estava de plantão, ele desconectava o telefone da sala e o levava para o quarto.
Antes de criarem a Discagem Direta à Distância (DDD), precisávamos da ajuda de uma telefonista para fazermos ligações interurbanas. Minha mãe tinha uma irmã que morava em Manaus. Para chamá-la, era preciso esperar a noite (depois das 20:00 a ligação era bem mais barato). Minha mãe ligava para a telefonista, dizia o número do telefone de minha tia e desligava o telefone. Meia hora depois, a telefonista ligava para nossa casa e dizia: “estou com sua irmã na linha”, e passava a ligação para minha mãe (a voz vinha com um atraso de uns 5 segundos). Desconfio que a telefonista ficava ouvindo a ligação, mas isso nunca ocorria a ninguém na época; isso talvez explique porque o DOPS visitava tantas pessoas nos anos 70, inclusive meu pai, que não era comunista, mas também não morria de amores pelos governantes de então.
Se estivéssemos fora de casa, e precisássemos ligar para alguém, o jeito era usar o telefone público, instalado nas ruas em conchas de fibra de vidro a que se dava o nome de “orelhões”. Para usá-los, introduzíamos fichas em uma ranhura na parte de cima do aparelho e o sinal para discar era ouvido no fone. Cada ficha durava uns três minutos (em ligações para a mesma cidade), e as fichas não usadas eram devolvidas por uma portinhola na frente do aparelho. Precisávamos comprar fichas na agência da telefônica, e andávamos com elas nos bolsos para o caso de ser preciso ligar para alguém.
Atenção leitores das gerações Z e alpha: a expressão “caiu a ficha”, que significa compreender algo depois de algum tempo, refere-se ao uso desses telefones públicos (quando colocávamos a ficha e alguém atendia a ligação do outro lado da linha, a ficha ficava retida no aparelho, e ouvíamos o ruído dela caindo em um receptáculo interno).
Para descobrir o número do telefone de alguém, usávamos listas telefônicas impressas. Recebíamos essas listas em casa, em nova edição a cada ano (era uma época em que só Batman e a NASA possuíam computadores para consultar o telefone de alguém). Elas eram divididas em três seções: Assinantes (os nomes completos dos possuidores de uma linha telefônica, em ordem alfabética, e depois seu número – para ligar para um amigo de escola era preciso saber o nome de seu pai), Endereços (com o nome da rua e o número da casa, e o número telefônico dessa residência) e as Listas Amarelas (com propagandas comerciais pagas por anunciantes que quisessem divulgar seus negócios). Era um mundo mais ingênuo, onde as pessoas não se preocupavam muito com sua própria privacidade nem com a possibilidade de um ladrão visitar sua casa depois de descobrir facilmente onde morava.
O que Ricardo e eu achamos de fato curioso é como as ligações de falsos chamadores tinham outra natureza: não eram facínoras que davam golpes por telefone: eram crianças, e alguns adultos mais imaturos, que passavam trotes inocentes. Escolhíamos um número, muitas vezes a esmo, e ligávamos para ele (o identificador de chamadas, que à época chamava-se Bina, ainda não havia sido popularizado. Adivinhe quem o inventou? Claro! Não foi um norte-americano ou um japonês, foi um brasileiro, chamado Nélio Nicolai!) Às vezes, ficávamos só em silêncio, ou rindo, enquanto a pessoa do outro lado se descabelava irritada com a ligação importuna. Outras vezes, fazíamos piadas mais elaboradas (alguém ligava para o açougue e dizia: “Alô! Você tem pescoço de galinha?” O incauto fornecedor respondia: “Tenho!”. A criança do outro lado gritava: “Use uma blusa de gola rolê que esconde!”, e desligava). Bons tempos aqueles, em que ninguém solicitava a senha de seus cartões bancários ou ameaçava matar sua filha sequestrada (que, na verdade, está dormindo no quarto dela).
Mas o mais interessante eram os equívocos que essa combinação – lista telefônica, ausência de identificador de chamadas e tempo ocioso – às vezes produzia. Conheço um casal que sempre ia a um hotel nas quartas-feiras, onde morava a irmã do marido, para jogarem buraco. Enquanto eles estavam fora, a empregada atendeu o telefone e uma senhora de voz trêmula, indicando já certa idade, disse:
– Eu queria falar com o João Evangelista (nome fictício para preservar a identidade das pessoas envolvidas).
– Ele não está, foi ao hotel.
– Foi ao hotel? Com quem?
– Com a mulher dele….
– Com a mulher dele? Fazer o que?
– Jogar buraco.
– Padre João Francisco Evangelista foi ao hotel com a mulher para jogar buraco? – e antes que a empregada pudesse explicar que o patrão era João Evangelista, mas não Francisco, e sim Antônio, a pessoa do outro lado desligou. Resultado: o padre João Francisco Evangelista, coitado, continua com péssima reputação no meio das beatas da sua paróquia até hoje.
[1] Marcelo Galuppo é doutor em Filosofia do Direito e professor da PUC Minas e da UFMG. Ele é autor, dentre outros, de #Um dia sem reclamar, de 2020, #Um dia sem odiar, de 2024, ambos em coautoria com Davi Lago, e Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, de 2024, todos pela Editora Citadel. Ele participa das redes sociais como Prof. Marcelo Galuppo.