
Gente chata sem noção - créditos: divulgação
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18-05-2025 às 09h29
Marcelo Galuppo[1]
Todo chato que conheço tem mais de 33 anos: não sei de nenhum que pertença à geração Z (mesmo porque raramente saem de seus quartos, e é difícil avaliá-los adequadamente sem ter contato com eles). Não sei se os jovens estão preparados para desempenharem esse papel, e é na esperança de educar as gerações vindouras que dou estas sugestões.
A literatura está cheia de personagens chatos: Pangloss no Cândido, José Dias em Dom Casmurro e Teodoro Madureira em Dona Flor e seus dois maridos são exemplos que me ocorrem e, quem não puder ser como Voltaire, Machado de Assis e Jorge Amado, que eram tudo, menos chatos, deve estudá-los para ser um chato de sucesso. Também pode-se recorrer à clareza discursiva dos tratados filosóficos para se aprender a ser chato, caminho que acho mais fácil. Teofrasto, no século IV a.C., já tratava deles nos Caracteres morais (Capítulo XII)e, pouco antes do Golpe de 1964, Guilherme Figueiredo também escreveu um Tratado Geral dos Chatos. Não deve ter lhe demandado muita pesquisa, pois tinha bem à mão quem pudesse servir-lhe de modelo, o que não é meu caso, mas anos de convivência com chatos permitiram-me enfim identifica-los antes mesmo que abram a boca.
O chato é aquele que encontramos na rua e que, ao termos a infelicidade de perguntar-lhe como vai, responde, desfiando imediatamente um rosário de doenças, traições e demissões de que foi vítima. Não espero que meus amigos mais próximos evitem contar-me seus problemas, e o ponto não é esse: o problema do chato é que não sabe discernir a hora de fazê-lo. Enquanto as pessoas normais dizem que estão enfrentando alguns problemas e que depois ligarão para contar-nos o que houve, o chato conta tudo, e com detalhes, assim que nos encontra, não importando onde estejamos, seja na fila do caixa do supermercado, seja na do proctologista. O chato é, antes de tudo, um inoportuno.
Um chato também costuma ter bandeiras, e pensa que nós só não aderimos antes a elas porque faltou-nos doutrinação. Dieta anti-inflamatória, criptomoedas ou filmes japoneses da década de 40, para não falar em veganismo, libertarianismo e outros ismos, são assuntos comuns dos chatos. Não que esses assuntos sejam chatos em si mesmos: o que é chato é que eles sejam apresentados como panaceia, tanto para os males do capitalismo quanto para unha encravada, tanto quando a vítima procura por conselhos como quando procura por sossego. Se alguém quer ser chato, é preciso escolher um assunto que não interesse a ninguém, estuda-lo a fundo e incluí-lo em toda ocasião que se apresentar. O objetivo é despertar tédio no ouvinte. Para isso, o chato deve aprender a ser excessivamente didático, de preferência explicando todas as piadas que contar.
Um chato também desconhece distâncias sociais. É o tipo de sujeito que chega perto de seu rosto para falar-lhe, você dá um passo para trás e ele avança mais um passo para frente, ou então, o pior de todos, aquele que acerta o nó de sua gravata (de você, leitor, não a dele) à medida que fala sobre os benefícios da dieta de chia enquanto esperam pelo exame no proctologista.
Um chato tem mais uma característica: falta-lhe habilidade para usar recursos que, empregados por outros, são sinais de presença de espírito. Marcelino de Carvalho, o mestre da etiqueta e inventor da crônica social no Brasil, conta que, certa vez, um chato ouviu dizer que, quando um cavalheiro abre a porta de um banheiro e há uma mulher dentro, ele deve fechá-la imediatamente e dizer, fingindo grave miopia: “Desculpe-me, meu senhor.” O chato gostou e resolveu adotar a fórmula. Na próxima festa, ele abre a porta do banheiro, vê uma mulher, fecha a porta e, na hora do jantar, acontece de sentar-se ao lado da infeliz. Ele então vira-se para ela e diz: “Mais cedo eu fui ao banheiro e adivinha quem eu vi lá dentro? Um homem!”. Esse é também o caso do padrinho que anuncia no discurso da festa casamento que espera que a vida de esbórnia do noivo finalmente tenha chegado ao seu fim e do tio que repete sempre as mesmas piadas (a do pavê, no Natal, e a dos bombeiros, no aniversário), que crê serem muito criativas, ano após ano. O chato nunca sabe o momento de parar.
Finalmente, o chato costuma ser excessivamente vaidoso, e tenta suprir hoje a falta que pensa que fará ao mundo amanhã: fala sempre de si, de seus atributos, de suas viagens e de seus feitos (inclusive naquela fila do proctologista), sem que ninguém esteja realmente interessado nos mesmos. Conheci um professor famoso por sua vaidade e por sua chatice. Certa vez, na fila de uma farmácia em que eu pretendia comprar uma pomada prescrita por aquele médico (e na qual preferia não ter encontrado ninguém), começou a conversar comigo, falando de suas virtudes, dos vícios alheios e de sua missão messiânica de curar a ignorância do mundo. Depois de entediar-me o suficiente, virou-se para mim e disse: “Agora vamos parar de falar de mim, vamos falar de você! O que você achou de meu último livro?”
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, da editora Citadel, entre outros. Ele escreve quinzenalmente aos domingos no Diário de Minas.