Créditos: Divulgação
14-12-2025 às 10h20
Lucia Maria Paschoal Guimarães*
Tania Bessone**
Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1849. No terceiro andar do Paço da Cidade, atual Paço Imperial, uma cerimônia especial acontecia: a inauguração das novas instalações do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Entre os presentes, um jovem de 24 anos chamou a atenção não apenas pela postura formal, mas também por sua atitude incomum naquele dia: era o imperador d. Pedro II.
Conhecido por ser discreto e falar pouco em público, o imperador quebrou o protocolo. Deixou de lado as formalidades e foi direto ao ponto, fazendo um pedido que revelava uma preocupação profunda por como seu reinado seria lembrado no futuro: “Sem dúvida, senhores, que a vossa publicação trimestral tem prestado valiosos serviços, mas para que esse alvo se atinja perfeitamente é necessário que não só reunais os trabalhos das gerações passadas, ao que vos tendes dedicado quase que unicamente, como também pelos nossos próprios, torneis aquela a que pertenço digna realmente dos elogios da posteridade.”
A frase deixava um recado claro aos letrados do IHGB: era preciso construir uma imagem adequada do presente na revista do Instituto. Não bastava estudar o passado, era preciso construir uma boa imagem do presente para as gerações futuras. A recomendação do imperador, porém, soava quase desnecessária. Desde sua criação, o IHGB já trabalhava como uma espécie de “departamento de divulgação” do Segundo Reinado.
Uma instituição para contar a história do Brasil
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi criado em 1838, apenas 16 anos após a Independência. No entender dos seus fundadores, o padre Januário da Cunha Barbosa e o militar Raimundo da Cunha Mattos, cabia ao Instituto coletar os materiais para a escrita da história do Brasil de forma a engrandecer o jovem Império americano.
A ideia não era original. Na Europa, instituições similares – chamadas de “sociedades sábias” – já existiam há tempos, reunindo intelectuais para debater história, literatura e ciências. O IHGB se inspirou principalmente no modelo francês, criado em Paris em 1834. Mas havia uma diferença importante: enquanto as instituições europeias estudavam países com séculos de história, o IHGB precisava inventar as tradições de um país que acabara de nascer. Era preciso criar uma narrativa para legitimar a monarquia e dar ao Brasil um passado digno de uma grande nação.
Como explica a historiadora Lúcia Maria Paschoal Guimarães, autora de um estudo original sobre o tema, o projeto tinha um claro objetivo político: “dotar o país recém-independente de um passado adequado às pretensões da monarquia”. Para isso, os conflitos e rebeliões que marcaram os primeiros anos do Império eram minimizados ou tratados como “arroubos juvenis” de uma nação ainda em formação.
O jovem imperador e sua “escola particular”
D. Pedro II tinha apenas 14 anos quando assumiu o trono, em 1840. Era o monarca mais jovem do mundo e, coincidentemente, governava o país mais jovem das Américas. Essa juventude se tornou um dos principais trunfos na construção de sua imagem pública.

Reprodução: Nina Mello.
Diferentemente de seu pai, D. Pedro I, conhecido pelo temperamento explosivo, o perfil do jovem imperador foi construído a partir da imagem do governante pacífico que não precisaria usar a força para se impor. Suas armas seriam a tolerância, a generosidade e, principalmente, o amor pelo conhecimento.
Joaquim Manuel de Macedo, secretário do IHGB na época, descreveu D. Pedro II como alguém “predestinado pela divina providência para lançar os seguros fundamentos da imensa grandeza do Império do Brasil”. Segundo ele, o imperador havia “apagado os ódios e as paixões” e “levantou a paz, a concórdia e a felicidade da nação”.
Por sua vez, D. Pedro II assumiu esse perfil ainda adolescente, aceitou ser o protetor oficial do IHGB e exercer a função de mecenas das letras, das ciências e das artes. Em 1849, ele mandou construir novas instalações para o Instituto no próprio Paço Imperial, bem ao lado da Capela Real. A partir daí, tornou-se presença constante nas reuniões. Entre 1849 e 1889, quando partiu para o exílio, D. Pedro II compareceu a 508 sessões ordinárias do Instituto – uma média impressionante de mais de 12 reuniões por ano durante 40 anos.
Um imperador cientista avant la lettre
A participação de D. Pedro II no IHGB ia muito além da presença física. Ele debatia com os intelectuais, sugeria temas de pesquisa, financiava publicações e doava livros raros. Chegou a comprar a valiosa biblioteca do naturalista alemão Von Martius, especialmente para doá-la ao Instituto.
O imperador também tinha o hábito de passar lições de casa aos letrados do IHGB.. Distribuía entre os sócios temas e questões para dissertação, sempre com prazo determinado. Para se ter uma ideia, em uma única sessão, em setembro de 1851, chegou a distribuir 11 temas diferentes, que iam desde a criação de um dicionário de palavras indígenas até o estudo dos escritos do diplomata Alexandre de Gusmão.
Sua dedicação era muito significativa, preocupando-se até mesmo com a frequência dos outros membros às reuniões. Enviava bilhetes pessoais para lembrar aos amigos sobre a necessidade de frequentar às sessões do Instituto.
Em um contraste interessante relativo às nuances de sua letra, é importante registrar as modificações de sua caligrafia ao longo da vida. As lições de caligrafia praticadas pelo menino Pedro de Alcântara desde a mais tenra idade são documentos raros que podem ser consultados no acervo do Arquivo do Museu Mariano Procópio que nos ajudam a compreender estas diferenças.
Os cadernos existentes no Arquivo do museu denominam-se “Exercício de Caligrafia de D. Pedro II” e constituem exemplares de raro interesse para estudiosos. Em artigo publicado na coluna “D. Pedro II – 200 anos”, do Diário de Minas, os autores Priscila da Costa Pinheiro Boscato e Sérgio Augusto Vicente analisam o esforço e a disciplina do futuro imperador para atingir beleza e sofisticação na sua letra ao longo da infância. A ironia presente neste processo é que, ao se considerar imagens apresentadas neste artigo, D. Pedro II foi perdendo ou abandonando esse rigor caligráfico ao longo dos anos. Seja pela pressa em anotar ou pelo fato de não ter a mesma paciência que tinha ao aprender as primeiras letras, a caligrafia do monarca não revela as qualidades que possuía quando estudava as primeiras letras.


À direita, bilhete de D. Pedro II dirigido a Luís Pedreira do Couto Ferraz (Barão do Bom Retiro), em 13 de dezembro de 1870. Acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RJ).
Mas nem tudo era seriedade. Documentos preservados no arquivo do IHGB mostram que, durante algumas apresentações mais enfadonhas, o “Príncipe Perfeito” se distraía fazendo rabiscos no papel, como qualquer estudante entediado em sala de aula.

A transformação: de intelectual a guerreiro
A imagem cuidadosamente construída de D. Pedro II como um “rei filósofo” seria testada na década de 1860, com a Guerra do Paraguai. Quando soube que tropas paraguaias haviam invadido o Rio Grande do Sul, o imperador surpreendeu a todos.

Acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RJ).
Apresentou-se como o “voluntário da pátria número 1” e partiu para o front de guerra. A transformação foi registrada pelo artista Henrique Fleiuss na revista Semana Ilustrada, que mostrou o imperador trocando as roupas civis pelo uniforme militar e o tradicional poncho gaúcho.
A mudança de imagem foi um sucesso. D. Pedro II se tornou o maior incentivador do alistamento voluntário para a guerra, provando que sabia ser tanto intelectual quanto guerreiro quando necessário.
O imperador do povo
Mesmo assumindo a sua face guerreira, D. Pedro II manteve a imagem de um governante próximo do povo. Aboliu cerimônias tradicionais da monarquia, como o beija-mão, e simplificou o protocolo das audiências públicas.
Uma das figuras mais populares que frequentava as audiências públicas do Paço de São Cristóvão era Cândido da Fonseca Galvão, conhecido como Príncipe Obá. Filho de africanos forros, combatente da Guerra do Paraguai, ele se dizia descendente da realeza africana e circulava pelas ruas do Rio de Janeiro em trajes militares. Dom Obá costumava ter longas conversas com o Imperador nas audiências, o que reforçava a imagem de D. Pedro II como monarca acessível e estimado pelos súditos.
O “Magnânimo” e o fim de uma era
Os últimos anos do reinado de D. Pedro II foram marcados por crises políticas que enfraqueceram a monarquia. Paradoxalmente, foi nesse período que sua popularidade pessoal atingiu o auge, graças à abolição da escravatura em 1888.

O ato lhe rendeu o apelido de “O Magnânimo” e o transformou na figura mais popular do país. Mas não foi suficiente para lhe salvar o trono. Em 15 de novembro de 1889, a República foi proclamada e D. Pedro II partiu para o exílio na Europa.
Apesar da queda da monarquia, a imagem pública do ex-imperador permaneceu intacta. Dias após a Proclamação da República, no próprio IHGB, João Severiano Maciel da Fonseca – irmão do marechal Deodoro da Fonseca, líder do movimento republicano – fez um discurso defendendo que D. Pedro II continuasse como membro honorário da instituição.
Um legado construído a quatro mãos
A história da relação entre D. Pedro II e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro revela como o perfil de um governante pode ser cuidadosamente esboçado. Tal qual um desenho riscado a quatro mãos: de um lado, os intelectuais do IHGB preocupados em traçar a figura do governante ideal; de outro, o próprio imperador, consciente da relevância de deixar um legado positivo do seu reinado.
Essa parceria resultou nas imagens que até hoje temos de D. Pedro II: o mecenas das artes e ciências, o “rei filósofo”, o governante bondoso e erudito. Uma construção que se mostrou tão eficaz que sobreviveu à própria monarquia e continua influenciando a forma como vemos o último imperador do Brasil.
Para saber mais!
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade
Imperial”. 2. ed. São Paulo: Annablume, 1995.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Documentos e relatórios dos séculos XIX.
CARVALHO, José Murilo de. Teatro de sombras: a política imperial. São Paulo; Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais; IUPERJ, 1988.
Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Correspondências e documentos de D. Pedro II.
BLOCK, Maurice (dir.). Dictionnaire Générale de la Politique. Tome Premier. Paris: O. Lorenz Libraire-Editeur, 1863.
* Lucia Maria Paschoal Guimarães é professora titular aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
** Tania Bessone é professora aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

