Com o tempo perde-se o bom senso. Em Serra Pelada, alguns chegaram ao absurdo, à loucura.
Depois da explosão do ouro, dos mestres de obras a diretores de construtora, ninguém ficou longe das catas. A ponte ficou inacabada. Todos atrás da fortuna no novo eldorado.
23-08-2023 às 09:25h
José Altino Machado*
Fim de 1979, acabando outubro, um fazendeiro próximo a Marabá, uma pequena e velha cidade na confluência do rio Itacaiúnas com o rio Tocantins, realizava um desmatamento em sua fazenda. Arrancava alguns tocos remanescentes de outras derrubadas.
Ao arrancar um deles, viu aos seus pés, entre as raízes do buraco que se formou, algumas pedras roliças, pesadas e sujas, com forte coloração amarela. Surpreendeu-se, por não se tratar de um minério qualquer.
Levou-as para Marabá, onde foram identificadas como o grande motor de ambições, e o despertar de sonhos: ouro.
Apenas nove garimpeiros foram verificar a fonte de pepitas tão grandes. Numa simples pesquisa, logo concluída, regressaram a Marabá com quase nove quilos de ouro.
Naquele momento, dava-se a partida ao que se tornaria a mais conhecida mina em exploração a céu aberto do mundo. Grandes lideranças de garimpos chegaram imediatamente com sua gente.
Eles pretendiam explorá-la melhor, e ampliar inclusive a possibilidade de pesquisa do minério na região. Foram literalmente atropelados pela corrida de gente sem nenhuma experiência anterior, todos atrás desses garimpeiros profissionais, que marcam a certeza, ou quase, da presença da fortuna. Pessoas que nunca haviam entrado num garimpo, não sabiam nem o que era aquilo. Elas apenas entendiam que a riqueza estava ali facilitada. Curioso notar que essas lideranças sempre sofreram da parte de opiniões externas à Amazônia algum preconceito. Ele se origina em velhas políticas de esquerda que confundem, à moda antiga, condutores de homens com patronato. Há uma especulação quanto à diferença em ser dono de um garimpo ou não. Dono de garimpo não usa bateia; por isso não o consideram como garimpeiro. Esse conceito inteiramente errôneo perdura no Sul, e isso iria fazer diferença na nova descoberta.
Os garimpos do norte, diferentes de outros em termos profissionais, são inteiramente setorizados. Há o responsável pela descoberta, que procura informações, bons lugares onde existam possibilidades de novas ocorrências.
O que vai fazer o teste na área indicada pelo descobridor.
No arranjo, o importante é confiar nesse pesquisador. Ele, de cuia na mão, estabelece a quantificação da riqueza.
A isso tudo se acrescenta o piloto que os segue para fazer abastecimento de víveres.
Esse elenco de homens de uma só vontade não se preocupa com quem é mais importante. Muitas vezes, e ironicamente, o piloto de um avião pode ser o descobridor do ouro, e até o guia de toda a operação. Ao final, tem-se uma composição de talentos e trabalho participativo, muito diferente das formas encontradas em Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul e outros estados com mão de obra garimpeira, em especial o próprio Mato Grosso.
Nesse estado, o garimpeiro sai com um grupo de companheiros, e todos são bateadores e pesquisadores.
Totalmente diferente da Amazônia, selva bruta. Ali se necessita de quase um colegiado para descobrir, viabilizar e operar o garimpo. Não há a mínima possibilidade de se pensar em vínculo empregatício uns com os outros.
Nenhum garimpeiro na Amazônia jamais permitirá a imposição de carteira profissional, que o torne empregado. Riscos e lucros devem ser gerais. As percentagens obedecem ao critério de distribuição universal de rendimento em parcerias. É a mesma que se pratica na pesca. Ao armador, ao viabilizador da empreitada, um percentual; outro para todos os demais participantes. Equivalente aos marinheiros e os pescadores propriamente ditos. Se não aparecem os peixes, tal como na Amazônia, o ouro, todos perdem.
Até então, não havia surgido uma área de garimpo com tão reduzido espaço físico, e que coubesse tanta gente. Serra Pelada não tinha mais que mil metros de raio e já acolhia, logo ao iniciar, quase duas dezenas de milhares de homens trabalhando.
Quando cheguei a Marabá, o transporte para a jazida se fazia pela mata. Pegava-se um carro, subia-se uma PA, rodovia estadual existente. Ela passava aproximadamente a uns quarenta quilômetros de Serra Pelada. A partir desse ponto, subiam a Serra a pé ou em um jipe-doido, conhecido por “espanta cão”. Uma pequena pista de pouso estava sendo construída. Ajudei a viabilizá-la. Todo o trabalho feito na base de enxada.
Após ser inaugurado, todo o movimento tornou-se febril e dinâmico. Serra Pelada, a grande grota em um reduto vulcânico do passado, agora, abrigava aqueles que investiam suas últimas chances de independência. Percebi ser aquela grota a possibilidade da popularização extensiva da riqueza que faz a grande maioria abandonar a segurança de seus salários, e se arriscar em uma aventura perigosa, totalmente nas mãos da sorte.
Com o passar do tempo, no exato momento em que começam a gostar da luta, mais pela conquista e suas possibilidades, do que pela própria riqueza, perde-se o bom senso. Todos trabalham com uma antevisão da fortuna, pela perspectiva aliada ao sonho e à ilusão. Essa antevisão torna-se prazerosa e viciante. Em Serra Pelada, alguns chegaram ao absurdo.
Havia centenas de operários e funcionários trabalhando na construção de uma grande ponte que ligaria a velha Marabá à cidade nova, na outra margem do rio. Com a explosão do ouro, dos mestres de obras a alguns diretores da empresa, não ficou ninguém. Foram todos atrás do sonho da fortuna, do novo eldorado.
*José Altino Machado é jornalista, escritor e garimpeiro, natural de Governador Valadares