
UPA 24h de Barão de Cocais MG - créditos: divulgação
24-08-2025 às 10h00
J.D. Vital, da Academia Mineira de Letras (*)
Na UPA em Barão de Cocais, antigo povoado de Morro Grande, escutei o relógio do Santuário de São João Batista bater nove horas da manhã. Consultei meu celular. Vi que adiantara em dois minutos o mecanismo acoplado à sineira das torres sob o pontificado sublime do sino maior, fundido em 1822, data da Independência do Brasil pelo príncipe regente Dom Pedro I.
Melhor avançar, que atrasar, pensei, enquanto a atendente da Unidade de Pronto Atendimento Luis Alberto Pinto Coelho, aberta 24 horas, preenchia meus dados de ave rara em um posto do SUS, como se um cisne negro fosse apanhado navegando na Lagoa das Antas, enfurnada entre o Córrego da Onça e a Lagoa dos Coitos, ali na região da Mina miraculosa do Gongo Soco, próxima ao povoado do Socorro.
A moça solicitou minha carteira de identidade e meu endereço. Apenas isso. Era sábado. Temi demoras por falta de profissionais, que poderiam aproveitar o agosto ensolarado para gazetear. Quem sabe, subir a Serra do Caraça, levar o filhão para fotografar a pedra onde o imperador Dom Pedro II escorregou e bateu o sacro bumbum imperial na ladeira das Sampaias. Isso aconteceu durante sua última visita a Minas, sete anos antes da abolição que libertou as escravizadas Sampaias a serviço do mosteiro e a oito anos da queda da monarquia e da proclamação da República.
O monarca caiu de costas. Os padres do Caraça mandaram grafar o tombo na pedra, com a imagem da coroa e a data de 1881.
Eu também caíra de costas.
Parece que o acidente não afetou o esqueleto de Sua Majestade, chefe augustíssimo do Segundo Reinado brasileiro, então com 56 anos de idade. Acostumado aos ares tropicais e aos confortos da corte carioca, o monarca não hesitou em mergulhar na banheira de água fria, às cinco horas da madrugada, na friagem de Caeté, antes de tomar a estrada para o Gongo Soco, Morro Grande e o Caraça. A cavalo.
No meu caso, fui vítima da imprudência. Infringi mandamentos da vida contemporânea, que circulam pela Internet. Avesso às redes sociais e posicionado na vanguarda do atraso, segundo expressão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que terá suas obras completas reeditadas em 2026, ignorei as advertências e recomendações aos idosos para preservação da sua saúde e, como diriam os padres do seminário, para a maior glória de Deus.
Se você tiver mais de 70 anos, evite banhos diários, demorados e em água demasiadamente quente. Basta entrar no chuveiro uma ou duas vezes na semana. Furtivamente, como quem belisca a Bolsa de Valores. É o conhecido banho de gato.
Insistir em uma rotina de banhos diários e ensaboados, dizem os entendidos, pode sabotar a saúde dos velhinhos porque destrói a armadura natural da pele, deixa-a vulnerável a ressecamentos e rachaduras dolorosas transformadas em avenidas abertas a infecções.
Meu conselho: siga a ordem do general Napoleão Bonaparte, “le Petit Caporal”, de volta a Paris e aos braços da idolatrada imperatriz Joséphine de Beauharnais, em mensagem despachada de algum campo de batalha da Europa: “ Mon amour, não tome banho, estou chegando em três dias” – teria escrito o conquistador apaixonado com chapéu de cangaceiro francês.
Em postagens, os sábios da Internet alertam para outros riscos da velhice. São três os maiores inimigos da coluna de uma pessoa idosa, principalmente se for mulher: o tanque de lavar roupa, a vassoura e a brincadeira dos netos.
Imagino que essa farândola de textos de autoajuda surgiu, por aqui, com o nosso conterrâneo Lair Geraldo Theodoro Ribeiro, nascido em Juiz de Fora, em 6 de julho de 1945.
Leio na Internet que o escritor, nutrólogo, cardiologista, professor, palestrante, médico e promotor de ciências de vanguarda, como a medicina alternativa e a programação neurolinguística, chegou em forma aos 80 anos de idade.
Lair Ribeiro, uma simpatia no trato pessoal, presenteou-me com uma nota de US$ 1.00. Para dar sorte, explicou, após conceder-me entrevista no programa “Gente de Opinião”, apresentado na TV Manchete nos idos de 1990, sob a direção do inesquecível jornalista Lúcio Portella.
Ele contou para Bruna Lombardi que andava sempre com dinheiro vivo no bolso, segundo assisti no Youtube. No dia da entrevista, o oráculo de Juiz de Fora e de Harvard, conforme consta em seu currículo, carregava US$ 1,890,00 na algibeira. Em “cash”, no jargão dos súditos do insondável presidente Donald Trump. Desconfio que ele deu à diva de olhos italianos uma nota maior que a dada a mim.
Conheci Bruna Patrícia Romilda Maria Teresa Lombardi em meados de 1970 durante evento cultural na sede social do Flamengo Esporte Clube, em Barão de Cocais. Fui portador do livro “Minhas Marílias e seus nomes de guerra ”, do escritor e humorista Dirceu Alves Ferreira, de Araxá, para a moça, então no esplendor dos 30 e poucos anos de idade.
“É só aproximar-se e entregar, ela me adora” – disse-me o irmão da jornalista Leila Ferreira, autor de textos hilários mordentes e de uma risada estridente, como o grito da seriema, amigo de Ziraldo e da turma do “Pasquim”. A loura pequetita metida em um blazer furta-cor, vinda do Rio de Janeiro em lua de mel com a celebridade, recebeu a encomenda, cobriu minha falta de graça com os olhos verdes de Capri e agradeceu, com sorriso acanhado.
Soube que Bruna, aos 73 anos de idade, permanece bela, culta, autora de livros de poesia, atriz de cinema e de TV, despossuída de vaidades e de frescuras. Ela atua nas redes sociais compartilhando lições de vida.
O relógio da matriz sinalizou o toque solteiro de meia hora. E me puseram na sala do médico. Com dores nas costelas. Por desatenção aos conselhos das redes sociais, ousei participar de uma roda de bobinho com os futebolistas da família, meus netos Miguel, Thales e Rafinha, herdeiros das tradições e glórias do Metalusina, contendor heroico do Atlético, do América, do Cruzeiro, do Siderúrgica, do Asas, e sobretudo, do Meridional, quando protagonizavam o clássico Mé-Mé.
Rafinha, de seis anos, me entortou em um drible da vaca. Em firulas desconcertantes, enfiou-me entre as pernas bolas em gingadas que me deixaram estatelado, como um desastrado rei de congado que patinou na pedra sabão. Era domingo, dia dos pais. A torcida familiar socorreu-me, assustada. Levantei-me. Veterano, mas esbanjando estilo.
De volta a BH, passada a euforia da festa, a cacunda doeu. Senti fisgadas nas costas e no peito. Passei a semana ligando para o plano de saúde que pago religiosamente há décadas. Para laboratórios clínicos e o pronto socorro de hospitais. Um deles marcou a consulta para cinco dias à frente, esclarecendo, encarecidamente, que seria conveniente programar também o exame de Raio X.
Agora, na UPA de Barão de Cocais, na bendita claridade do terceiro sábado de agosto, sem hora marcada nem burocracias, o médico plantonista me atende. Com zelo e simpatia. O doutor Marcos Roberto Campos Júnior diz que vem da cidade vizinha de Mariana, pela rodovia que margeia as áreas enlameadas no rompimento de rejeitos minerais assassinos das barragens do Fundão e Santarém nas bandas da Mina do Germano, no distrito de Santa Rita Durão.
Assiste, a cada viagem, à procissão de imagens de uma tragédia ambiental do fim do mundo que sepultou 19 pessoas, arrasou a bacia do Rio Doce, e que se arrasta nos tribunais internacionais com a contrariedade do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, resolvido a se intrometer no processo alegando valores da soberania nacional.
Receitou um comprimido e uma injeção, encaminhando-me ao aparelho de Raio X.
Em alguns minutos, a técnica da radiografia, cujo nome lamentavelmente não anotei, tirou as chapas, enviou-as ao computador do médico e me liberou com semblante gentil. O jovem doutor enxergou na tela, onde nada distingui, uma pequena fissura na costela inferior. Digitou o receituário – um antibiótico, dois anti-inflamatórios e um medicamento poderoso para acalmar alguma dor atrevida que por acaso sobreviesse.
Então, o sino da matriz deu 10 horas. Saí soberano da UPA mantida pela Prefeitura de Barão de Cocais e, como um clarão, veio à memória a figura do ex-deputado Aníbal Teixeira. Foi ele, ministro do Planejamento no governo do presidente José Sarney, de 1987 a 1988, quem autorizou as verbas para a construção do hospital de minha terra.

Igreja matriz Santuário de São João Batista, Barão de Cocais – MG
Dei vivas ao SUS do Brasil, caminhando e cantando, como escreveu Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona e doutor da Igreja, aos viajantes rumo à pátria celestial; que não se extraviem, não olhem para atrás nem fiquem parados saboreando o repouso. Cante, mas sem parar de caminhar, como fazem os peregrinos.
Na marcha segura, ditada nesses tempos difíceis por Leão XIV, o papa agostiniano conciliador vindo do Peru, fui em frente, ofuscado pelo esmeril prateado das serras da Piedade, da Cambota e do Caraça, sob o nicho de São João Batista na portada da igreja, esculpida em pedra sabão por Aleijadinho e incensada pelos especialistas como das mais belas de Minas.
(*) J D Vital é jornalista, filósofo, membro da Academia Mineira de Letras e Academia Marianense de Letras; foi Assessor de Imprensa e Relações Públicas dos governadores, Tancredo Neves e Hélio Garcia