
A emblemática caneta Bicazul - créditos: divulgação
05-102025 às 09h00
Marcelo Galuppo[1]
Vejo sobre a mesa uma caneta esferográfica da marca BIC, que repousa ao lado de um caderno pautado, de capa cinza craquelada de branco. A forma da caneta é chanfrada, de tal modo que, parecendo um cilindro, é na verdade formada por seis faces estreitas, que compõem um hexágono (hexágonos não formam um sólido perfeito, só existem cinco sólidos perfeitos, e acho que foram citados pela primeira vez no Timeu, de Platão). O corpo da caneta é de plástico transparente, incolor, e guarda em seu interior um estreito tubo de tinta, que ocupa quase toda a extensão do objeto. Em uma de suas pontas, projetando-se para fora do tubo, em uma reentrância de plástico dourado, uma pequena esfera de tungstênio transfere por capilaridade a tinta para sua superfície. É com ela que se escreve sobre o papel. Há um pequeno furo no corpo da caneta, mais ou menos na metade de sua extensão, que o Google diz servir para regular a pressão interna do utensílio, permitindo que funcione adequadamente. No fim do corpo da caneta há uma pequena rolha de plástico, na cor da tinta da caneta. Sobre o corpo, também há uma pequena logo, na qual vejo alguém, com uma cabeça desproporcionalmente maior que seu corpo, segurando algo que parece ser uma gigantesca pena, precursora da caneta. Ao seu lado, a palavra BIC, escrita assim mesmo, com letras maiúsculas. Parece ser uma sigla, mas não é: é o nome do inventor. Qual será a etimologia da palavra caneta, já que em inglês ela parece ser evidente? Levanto-me da mesa, vou até a estante e pego o segundo volume de um conjunto de cinco livros vermelhos. Abro-o na página 52. Descubro no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa que caneta é diminutivo de cana, e imagino um homem na antiguidade usando a haste de uma gramínea para escrever sobre um papiro. A mente da gente não para de pensar. Volto à mesa e à caneta. Lembro-me de que BIC é uma marca francesa, e que, em francês, caneta é stylo, e esferográfica é stylo-bille. Daí passo para bolígrafo, que é caneta esferográfica em espanhol, que acho que vem do grego bolis (esfera) e graphein (escrever). Volto mais uma vez para a caneta BIC. Stylo vem do latim stylus, estilete, usado sobre as tabuinhas recobertas de cera que se usavam em Roma para se escrever, quando ainda se falava Latim nas ruas. Os romanos já tinham prédios de apartamentos, que chamavam de insulae, e os apartamentos térreos eram os mais caros, porque não demandavam escadas para se entrar neles e porque era mais fácil fugir deles em caso de incêndio. Pobre sempre corre mais risco. O Domínio dos Deuses é um episódio de Asterix em que se constrói um condomínio com esse nome. Quase caio na armadilha de falar sobre a palavra episódio, que li hoje na Poética, de Aristóteles. Olho novamente para a caneta e lembro-me de que é sobre ela que estou tentando escrevendo, mas vem-me à mente a etimologia da palavra francesa bille, e é mais forte do que eu. Imagino que seja uma pequena bola. Será que bille tem alguma ligação com a bile? A bile é produzida pelo fígado, e na antiguidade se acreditava que quem era dominado por ela tinha um temperamento colérico, que vem do grego cholé que quer dizer fígado. Fígado não! Acho que fígado é hepatos ou algo assim. Cholé é bile mesmo. Percebo que fujo mais uma vez de meu tema. Lembro-me de descrever a tampa da caneta BIC. Sempre achei bonito o azul royal de seu plástico. Quando era criança, trocava as tampas das canetas azuis e vermelhas da professora pela pura diversão de vê-la errar. A tampa tem uma forma cônica, apesar de o corpo da caneta ser hexagonal, e termina em um furo. Alguém me disse que o furo é para evitar acidentes fatais, no caso de algum bebê engolí-la. Lembro-me de que não havia esse furo, quando eu era criança. Mas havia Balas Soft, que não eram macias. Quem escolheu o nome da bala certamente não sabia nada de inglês. Volto para a tampa. Ela é escamoteável, e termina em uma presilha, que se prolonga por uns 3 centímetros sobre o corpo da caneta, que serve para prendê-la à folha de papel ou no bolso da camisa. Não meço a presilha, só estimo. Imagino. Não há razão aparente para que tenha mais do que 3 centímetros. Retiro a tampa e coloco-a sobre a mesa, ao lado da caneta. Vou escrever sobre a filosofia da caneta esferográfica. Olho o caderno pautado, arrasto-o sobre a mesa para perto de mim. Abro-o na primeira página, de um branco preso entre as linhas negras sobre as quais vou escrever. Pego a BIC em minha mão direita, seguro-a do modo como aprendi desde minha infância, na escola. Eu penso demais, preciso meditar. Levo a caneta ao papel. Encosto o tungstênio sobre o papel. Penso nas trocas elétricas. A tinta está seca. Desisto.
[1] Marcelo Galuppo é professor da PUC Minas e da UFMG, e autor do livro Os sete pecados capitais e a busca da felicidade, da editora Citadel, dentre outros (conheça o livro aqui). Ele escreve quinzenalmente aos domingos no Diário de Minas.